Mais-que-perfeito

8 de abril de 2024 1 Por Leandro Marçal

Dia desses, tive o azar de tropeçar no vídeo de um coach abobado (com o perdão da redundância) vomitando aquele tipo de frase feita, supostamente impactante e certamente irritante, como se resolvesse todos os problemas do mundo, do trabalho, e do mundo do trabalho: “feito é melhor que perfeito”. Naquele tom professoral e motivacional, incentivando discípulos a se arriscarem, tentarem a sorte, sem medo de dar errado. O velho papo de sempre.

Um desavisado diria que a perfeição não existe. Um gaiato responderia que, ainda assim, a perfeição deve ser buscada. Mas ninguém é perfeito, falaria um terceiro. Só Deus é perfeito, rebateria o mais religioso.

E por uma aleatoriedade mental, o vídeo do coach besta me fez pensar no pretérito mais-que-perfeito. Que nome bonito! E a explicação: tempo verbal que indica uma ação no passado, ocorrida antes de outra ação também no passado. Muito usado em situações formais e textos literários: fizera, dissera, andara, fora, filmara, ensinara.

Mais-que-perfeito. Assim, com hífen. E com pompa. Quando topo com uma palavra nesse tempo verbal, imagino alguém de roupa social enquanto escreve. Eu não tinha ido ao mercado antes de chegar à padaria, mas fora ao mercado antes de chegar à padaria. O coach não havia feito um comentário esdrúxulo antes de arrancar risos da plateia, mas fizera um comentário esdrúxulo antes de arrancar risos da plateia.

Tão cheio de si que se sente acima da perfeição. Acima de nós todos, além do impossível. Como alguns coaches, se sentindo tão importantes e capazes de mudar a vida de quem enche seus bolsos.

Talvez o pouco uso do mais-que-perfeito na linguagem oral seja simbólico. De tão acima do bem e do mal, só deve ser escrito, quase nunca é falado. Porque quando escrevemos, cortamos, editamos, revisamos. Não existe desculpa para sobrar um acento ou para justificar um mais-que-perfeito fora de contexto. Na fala, é diferente. Pode escapar um equívoco aqui, uma concordância incorreta ali. O lugar do mais-que-perfeito é no papel. Na formalidade. Na autointitulada alta sociedade. Longe das nossas impuras bocas cheias de erros de português no dia a dia mundano e banal.

Se tropeço com o mais-que-perfeito em textos contemporâneos, suspeito de certa afetação. Talvez a frase do coach bobalhão tenha me proporcionado essa livre associação de coisas justamente por isso: gurus da internet também são afetados, também se acham mais que perfeitos, fazendo daquele palco um altar onde são endeusados por gente desavisada, gaiata, por vezes tortamente religiosa.

Mais-que-perfeito. Com hífen. Com pompa. Um terror para quem está aprendendo o idioma. Carrego dúvidas sobre sua utilidade e aplicação. Também vale para os coaches. Mas pelo menos, o mais-que-perfeito tem algum valor. Convenhamos.