Linha 3, sentido centro*

10 de julho de 2023 0 Por Leandro Marçal

*Escrevi esse conto há alguns anos. Bom para ler numa segunda-feira pela manhã

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A cabeça de Sofia tremia com a vibração da janela. Sentada em um banco do lado esquerdo, com a perna encostada na mesma senhora que dias antes lhe contou, animada, sobre os últimos dias antes de se aposentar, tinha vergonha de dormir no ônibus lotado, mas o cansaço vencia diariamente. Acordou quando as rodas passaram por outra lombada. Perdeu a noção do tempo, não queria chegar à empresa e aturar o chefe.

Esfregou os olhos e percebeu o coletivo mais cheio. O caminho parecia não ter fim. Olhou para Lourdes, que lhe sorriu com o canto da boca e direcionou a armação grossa dos óculos para frente, mirando o nada. Tentou ver as horas, mas percebeu o relógio meio embaçado. As linhas finas e douradas dos ponteiros giravam, giravam, giravam tontamente e sem parar. Tocou duas vezes no vidrinho, não mudou nada. Afrouxou a corrente de metal a lhe apertar as veias, posicionou o presente dado pela mãe entre os dedos e sacudiu para dar corda. Nada mudou. Tudo inútil. Colocou de volta no punho esquerdo, porque a bolsa era o lugar perfeito para o esquecimento.

O ônibus seguia, o barulho do motor se misturava ao das pessoas conversando. Um homem em pé segurava a mala de executivo, estudantes faziam bagunça no fundão. Nunca gostou de lá, nem na época da escola. Não curtia chamar atenção, preferia ficar quietinha, no canto, sem incomodar ninguém. Era assim o trajeto diário até o serviço: quietinha, no canto, sem incomodar ninguém. Ainda assim, cumprimentava uns e outros passageiros falando seus nomes depois do bom dia protocolar. Passavam muito tempo juntos, indo e vindo do trabalho. Os outros eram todos iguais. Homens e mulheres padronizados.

Dava para ouvir as reclamações de Sandro com quem reservava um lugar próximo à catraca. Ele repetia ao velho amigo, o último a subir as escadas na ida e o primeiro na volta, que as péssimas condições de trabalho explicavam a suspeita de hérnia de disco. Queria se afastar daquela merda o quanto antes, conhecia um médico bom para resolver essas coisas.

Sofia passava pouco mais de duas horas diárias na linha 3, sentido centro. Olhou para um lado e para o outro, parecia estar sentada ali por muitos anos. Não lembrava como fez para escolher a roupa depois do banho quente naquela manhã, nem se precisou correr para não perder o mesmo ônibus de todos os dias. Nenhum idoso pediu seu assento reservado, o office boy Gladson não precisou olhar para o lado e criticar a falta de educação dessa juventude perdida, Daiane já estava sentada alisando a barriga de grávida, com olhar vago pela janela suja. Estranhamente, naquele dia não foi perguntada sobre até quando os patrões lhe obrigariam a trabalhar. O aposentado de short não fez piadas ao passar pela catraca, não houve um mísero desempregado com envelope em mãos perguntando a Sandro onde ficava a “firma” com o processo seletivo da vez para mais uma segunda-feira.

Segunda ou terça? Sofia vasculhou a mochila e não achou referências àquela data. Papéis, relatórios ou pastas com documentos que precisava entregar na reunião do primeiro horário. Nada. Sem dia, hora, referências. Olhava para a rua e não reconhecia o caminho percorrido. Não sabia quanto tempo faltava para dar um leve salto e desviar da poça d’água acumulada por um vazamento esquecido pela prefeitura, atravessar a praça onde o mesmo mendigo lhe pedia uma moeda para tomar um café, até que ela continuasse a sequência de passar o crachá, entrar no elevador e ouvir o ascensorista com sua pergunta retórica se era o 12º andar de todos os dias, esperando um previsível sim.

— Tem coisa errada aqui, dona Lourdes. Que horas são? Falta muito pra senhora descer?

— Que foi menina? Tá tudo bem?

— Onde é seu ponto?

— Tá longe ainda.

— E o seu, Gladson?

— Falta muito, por quê?

Sua pergunta foi complementada por uma risada entre a ironia e a falta de compreensão. Uma questão óbvia, dispensável para aquela hora da manhã. Muito estranho a menina sempre quieta abrindo a boca assim, como em um interrogatório.

— Em que ponto você desce?

— No mesmo.

— Não! Em que lugar, rua, endereço, sei lá. Tem algo muito errado aqui. O Sandro precisa parar!

O burburinho aumentou e todos olhavam Sofia. De pé, esbarrava nos ombros sem entender o que parecia um surto, mas com uma interrogação na mente. Parecia uma descoberta da jovem tão calada nos outros dias. Sofia puxou fios e apertou botões para solicitar ao motorista a parada no próximo ponto. Nada funcionou. Até chegar à catraca, viu pelas janelas a impossibilidade de determinar se era dia ou noite. O lado de fora estava irreconhecível. As pernas tremeram. Sandro olhava pelo retrovisor e sentia um estranhamento, mas seguia fingindo que nada acontecia em seu ônibus. Já não trocava palavras banais com o velho amigo. Encostado próximo ao câmbio antigo, este também se calava. Sandro não poderia parar no próximo ponto, nem no seguinte e não sabia o porquê. Não lembrava o nome do velho amigo, da passageira agitada lá atrás, nem sabia responder onde estava. Tinha uma única certeza: o certo era continuar dirigindo.

— Tá passando mal, menina?

— Não, Sandro! Quem foi o último a descer?

— Como assim? Eu sei lá….

— Tá dirigindo desde que horas? Que rua é essa?

— Volta pro teu lugar, menina!

— Alguém sabe onde estamos?

Nem os mais atentos podiam responder Sofia. Nem lembravam o assunto discutido no segundo anterior ao desespero. A grávida se apavorou e passou mal, mas já não sentia o peso na barriga. O executivo teve medo de conferir as horas, Sandro já não tinha dores nas costas. O senhor com short rumo à caminhada matinal sentiu saudades do sedentarismo.

— Para esse ônibus, Sandro, para!

— Como?

— Não olha pra frente, só para, tem algo muito errado aqui.

— Não consigo!

— Como não consegue?

— Não sei, não consigo.

Sofia tinha medo de puxar Sandro dali e provocar um acidente. Olhou para trás e viu os passageiros apáticos, presos naquele espaço delimitado, como peças de um quebra-cabeças desconhecido. Caminhou de volta ao seu lugar, sentou e ouviu o barulho interminável do motor. Encostou a cabeça na janela e dormiu outra vez, enquanto uma lágrima solitária escorria, salgando a saliva.