In loco*

3 de junho de 2024 0 Por Leandro Marçal

*No conto abaixo, um pouco de jornalismo esportivo e um pouco (muito) de vaidade. No fim da página, links para outros contos publicados no blog. Volto com as crônicas no mês que vem.

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Pré-jogo

Gosto de narrar do estúdio. Chego em cima da hora, curto o clima de ar-condicionado, sento numa poltrona confortável, tomo cafezinho e como bolacha de chocolate antes de abrir a transmissão e no intervalo. Não me incomodo com tumulto e gritaria, não encosto em gente fedida e desdentada, não tampo os ouvidos por gritos de idiotas louvando time de futebol, ninguém me enche o saco perguntando pra quem torço, nem me cobram pelo tempo gritando gol na rodada passada, nem me divirto com policial batendo em vagabundo em treta de estádio. E nada de cruzar com repórter invejoso pelo meu sucesso. Tem vida melhor?

Mas sei preservar a minha imagem. Ontem, mesmo. Dei entrevista pra um YouTuber. Mala pra caralho. Mas quem não é visto, não é lembrado. Adiei, falei em compromisso, inventei a falta de autorização da emissora, que a chefia tava barrando, que os caras são de outra época, que ficam embarreirando, só que uma hora não tinha mais história triste pra dar de desculpa. Fui lá. Preciso fazer média, tem semana que é difícil arrumar convidado pro Resenha Pura, meu podcast de entrevistas sem sal. E todo mundo sabe que nesse meio é assim, um fazendo média com o outro, uma mão lavando a outra. Quem se preocupa muito com baboseiras como ética e profissionalismo fica pra trás.

Tentei ser o mais simpático possível, preocupado em não parecer forçado. E tome história triste. Se eu não narrasse futebol, poderia investir numa carreira de ator. Imagina: Rafa Sampaio, galã de novela. Quando perguntaram sobre a minha trajetória, comecei falando que realizo um sonho em cada transmissão. Nem fiquei vermelho na hora. Também menti na maior cara de pau, falei que o clima do estádio me move, me enche de satisfação, mas que entendo as questões financeiras e burocráticas, são outros tempos, não ligo de narrar do estúdio. Minto bem, quem trabalha com futebol, quem grita gol pra tudo que é lado sabe mentir bem.

Perguntaram do meu começo nessa vida e tive que lembrar os tempos de pobreza. As primeiras participações como um repórter fodido na Rádio Comunitária do Bitaru, a oportunidade como narrador na Rádio Notícia Total, a chance de ser o titular na Rádio Sport Life, o começo como freelancer na TV nas divisões de merda até chegar aqui, na Tudo Esporte. Tava na cara que o público da televisão paga não aguentava mais o ritmo lento e cadenciado dos antigos. Falei que o público se identificou com a minha empolgação em cada jogo, em cada lance, mas a verdade é que investi na gritaria e num bordão besta. Comigo é resenha pura: um bordão besta pra um público besta. Não sou besta, então lucro em cima. Nas redes sociais, meus vídeos narrando ajudaram bastante, a chefia viu um monte de gente elogiando e apostou em mim. No fim das contas, é como se eu puxasse o tapete dos dinossauros, que não aposentaram logo porque televisão é vaidade. Todo mundo ama sair na rua e ser reconhecido, ser elogiado, sentir as bolas chupadas a cada desavisado pedindo pra tirar foto. Pra melhorar, ainda tem os freelas bem pagos lá no Click Sports. Bem pagos pra mim, porque a molecada aceita qualquer mixaria pra mostrar serviço em jogos de quinta categoria que ninguém vê no streaming.

Quando a entrevista acabou, fui até o banheiro e me olhei no espelho enquanto lavava as mãos. Pensei no moleque em começo de carreira, narrando partidas em campos de várzea, sonhando em frequentar estádios de grandes finais, gritando gol, se arrepiando com a torcida enlouquecida nas arquibancadas, transmitindo emoção no talo pra quem tivesse em casa. Moleque inocente, como todo moleque. Voltei pra casa com o motorista contratado pelo YouTuberzinho. O cara não parava de me olhar pelo espelho retrovisor, mas ignorei. Dei sorte, não tinha trânsito no caminho.

Primeiro tempo

Se o público de futebol não fosse tão imbecil, nunca iam cogitar que eu e o Célio Pinto somos entrosados fora do ar. Olha o nome do arrombado! Só não derrubo o desgraçado porque pode impactar no faturamento. Aí já viu. Tem otário que acredita nos bate-papos cheios de gracinha durante as transmissões. Odeio esse bosta. Se dependesse de mim, tava fora daqui faz tempo.

Enquanto ele vomita sua análise do jogo, confiro os meus papéis, repasso as anotações. Não posso esquecer nenhum merchan, preciso lembrar de todos os abraços pra quem me paga por fora. Ótimo, assim não preciso olhar pra cara do “Sério Pinto”. Um tempo atrás, falei o nome dele errado durante a transmissão, o corno ficou puto, demorou pra me responder, o público percebeu. Me chamaram lá de cima, rebolei pra negar que fosse uma provocação gratuita. O idiota tinha certeza que falei esse trocadilho ruim de propósito, pra ridicularizar. Também tinha certeza que ajudei na viralização, pra jogar o cara na fogueira das redes sociais. Não tava errado, mas foda-se.

Uma coisa não dá pra negar: o Célio é sério, apesar do trocadilho óbvio. O cara manja muito. Antes de virar comentarista, foi repórter de jornal, cobriu economia, cidades, cultura, tudo. Comentar futebol sempre foi o sonho dele, só deu azar de querer ser mais que eu. Eu dou audiência, porra. Quase joguei isso na cara dele durante o Resenha da Bola, a mesa-redonda de segunda-feira na Tudo Esporte. A discussão foi feia, ao vivo, baixamos o nível. Chamei o Célio de dono da verdade, de sabe-tudo, de espertão, de boleiro. Faltou um pouquinho pra chamar de caga regra.

A chefia obrigou a gente a gravar um vídeo, falando que tava tudo bem. Sabe aquele papo furado, o que acontece no campo fica no campo, o debate tava quente, não tem nada pessoal? Papo furado. Nem olho na cara desse filho da puta. Mas agora tô aqui, do lado dele, na mesma cabine, esperando terminar o comentário pra retomar a narração desse joguinho meia-boca.

Trouxa, tinha era que levantar a mão pro céu. Eu dou audiência, meu público é fiel. Era pra ele tá desempregado, fodido, trabalhando em jornalzinho pequeno e babando ovo de prefeitura. Nunca vai reconhecer esse privilégio.

Intervalo

Quando eu soube que a ex-mulher do Célio meteu chifre nele com o moleque da produção, gargalhei. Puta que pariu, recebi a boa notícia e pensei que ia mijar de tanto rir. Com vídeo, então, melhor ainda. O garoto, juvenil, inventou de passar pra frente o registro metendo na infeliz. Claro que ia vazar. Depois de demitido, eu falei que o moleque rodou, mas gozou. Os caras riram, falaram que eu não presto. Não dá pra negar, até porque fiz a minha parte pra desmoralizar o Célio.

Teve uma transmissão que ele percebeu quando chamei de “cornentarista”. Foi rápido e sutil, o público nem se tocou. Mas o Célio ali, do meu lado, me matou com os olhos. Dizem que no fim do jogo, subiu pra chefia, pediu minha cabeça. Mas eu dou audiência, não tinha como cair. Coitado do moleque, tá se virando num podcast de fundo de quintal pra pagar as contas.

O Célio, corno velho, precisa desse emprego. Precisa de mim, mas nunca vai admitir.

Segundo tempo

Que jogo merda. Nessas horas, é bom ter o Célio do lado, porque pergunto qualquer coisa. Não é analista, não é especializado, não tem curso de tática e da puta que pariu? Então, se vira aí, explica essa desgraça, conta pra quem tá em casa porque não acontece nada, mas sem espantar a audiência. Vai lá, espertão. Analista. Pelo menos tem o estúdio, o ar-condicionado. Imagina a desgraça de encarar trânsito, tumulto, gritaria, estádio fedendo a mijo, fingir simpatia no ar e segurar a bucha de uma partida ruim dessa. Como não preciso provar mais nada pra ninguém, tenho saudade zero desse aperto todo.

Amanhã é segunda, tem reunião de tarde. Se tudo der certo, tem novo patrocínio pro Resenha Pura. Foda é ter que vir de novo pra cá, vou ter que rebolar pra repercutir essa rodada cansada no Resenha da Bola. É foda, mas contrato é contrato. Agora que tô de namoradinha nova, preciso de mais patrocínio pro podcast. Não é fácil manter duas casas, principalmente com essas novinhas exigentes, custa caro sair na encolha.

Fim. Nos tempos de vacas magras, eu até faria igual ao Célio, babando ovo da técnica. Qual a chance dele queimar o narrador pra galera do chão de fábrica? De zero a dez, acho que vinte. Foda-se, quem dá audiência sou eu. Quando o porteiro sobe a cancela, aceno com o braço. O motorista da Tudo Esporte me olha pelo retrovisor, lembro que não me despedi de ninguém. E não me arrependo.

Pós-jogo

Quem não é visto, não é lembrado. Por isso, a gente passa o tempo todo criando conteúdo pra internet. Não sou muito de texto, porque ninguém liga pra texto. É vídeo curto, é vídeo longo, é vídeo de opinião. Da rodada passada, da próxima rodada, da transferência, da arbitragem, da polêmica vazia. Quase nunca me aprofundo, mas foda-se, nem quero. Ninguém quer. Quero soltar o tal conteúdo, sem tomar partido pra não espantar público, usando a hashtag certa e o título chamativo pra engajar nos comentários. Minha equipe é boa nisso.

“Fala galera, tudo bem com vocês? Tô aqui, voltando pra casa depois da transmissão de hoje, com o meu queridíssimo amigo Almeida, motorista da Tudo Esporte, manda um abraço pra galera aqui, Almeida. Almeida é gente fina. E aí, o que acharam do jogo de hoje? Curtiram a transmissão? Conta pra mim nos comentários. Cês sabem: comigo, é resenha pura. Valeu, boa semana pra gente”, mando o vídeo no grupo Equipe Resenha Pura, já já o pessoal posta, os caras não me deixam postar nada assim, por minha conta, têm medo que eu fale merda.

“Fala, Tiãozinho, como que tá, meu amigo? Me diz como tá a tua agenda essa semana? Tô querendo bater um papo contigo, umas propostas, uns projetos bons. Bora tomar um café esses dias?”, falo com a voz mansa na mensagem pro amigo de outras jornadas, hoje comissionado na prefeitura, tô com fome de patrocínio pro meu podcast e ele sempre me ajudou.

“E o cornentarista, se ligaram que hoje o cor-nen-ta-ris-ta tava chateado? Taquei ele pra falar o tempo todo nesse jogo merda, foda-se. Ah, pra quem reclamou antes: foda-se, eu sou narrador, porra, eu vivo de falar, claro que vou mandar áudio, seus arrombados. E é o seguinte, quem não gostou, vai alisar chifre do analista, aqui não tem mimimi hein?”, brinco no grupo Tudo Nosso Esporte. Os caras sabem que não dá pra comprar briga com o Rafa Sampaio, tão tudo do meu lado pra não rodar.

“Oi, meu amor. Vou demorar um pouco, viu? Chefia pediu uma reunião pra acertar umas coisas, devo chegar lá pela meia-noite e pouquinho. Fica tranquila que amanhã levo o Rafinha na escola, tá? Te amo”, preciso dar satisfação pra patroa.

“Meu amorzinho, tô a dez minutos daí, motorista tá me levando. Bota aquela roupinha que eu comprei pra você, bota?”, não posso deixar minha nova namoradinha sem atenção.

“Mestre, tudo bem? Desculpa a mensagem a essa hora, mas o pessoal da técnica tava reclamando… Precisa dar um toque no teu comentarista, ele não parava de falar. Sei que vocês aí de cima já bancaram o cara, mas tá difícil. Desse jeito não dá. Tá cheio de moleque bom aí, viciado em futebol, disposto a falar quando eu peço e calar quando eu quero. O cara tá me desafiando, parece que não sei, viu?”, falei com o Deus da Tudo Esporte, sem intermediação de santos.

“Para de chorar, Teixeira, deixa de ser chato. Ó, acabei de mandar uma mensagem pro homem. Vamos ver se agora dão um jeito e mandam esse corno pra longe daqui. Te falar, viu? Minha vontade era meter um ‘ou ele, ou eu’, mas agora não posso”, vejo o áudio carregando no grupo Tudo Nosso Esporte.

O motorista para em frente a casa da minha nova namoradinha. Pelo retrovisor, ele me vê abrindo a porta sem falar nada, fechando a porta depois de olhar pros lados. Portão aberto, entro sem bater. Guardo o celular no bolso. Hoje, mandei áudios demais. Preciso preservar a voz.

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A ideia desse conto, com um narrador odiando o comentarista, veio depois da publicação de O último a ser escolhido. Lá, tem outras 13 histórias em que o futebol é personagem, cenário, pano de fundo ou pretexto. Se quiser um exemplar, pode comprar AQUI ou me chamar no e-mail marcal_91@hotmail.com.

Outros contos que já publiquei no blog:

  • Chuvas deverão: também tem um pouco de jornalismo e egocentrismo.
  • O cão: ganhei um prêmio literário com essa história violenta.
  • Inveja: uma visão deixa o protagonista pensando no que não deveria.
  • Futuros: escolhas questionáveis geram consequências imprevisíveis.
  • Linha 3, sentido centro: a angústia no transporte coletivo.