Hoje esmurrei um morador de rua*
Não foi alegoria, muito menos metáfora ou outra figura de linguagem ‒ a única figura desprezível sou eu ‒ pois realmente, com a mão fechada e o punho curvado em um cruzado direto no queixo, esmurrei e quase matei um morador de rua.
Talvez o fato dele ter me esmurrado primeiro, e pelas costas, possa ser usado como atenuante ao fato de ter dado o soco no rosto de um homem tão vulnerável e já cambaleante pela dose diária de muito álcool e poucos sonhos.
Poderia dizer que, além do soco pelas costas, não satisfeito, ele partiu para cima de mim na ciclovia, no meio de duas avenidas movimentadíssimas, e muitos dirão que apenas me defendi.
Poderia dizer que apenas esmurrei um morador de rua, que estava atrapalhando o meu caminho de bom cidadão. A cidade tem muitos caminhos e muitas encruzilhadas e em umas das encruzilhadas mais famosas da cidade, deixei em oferenda um espetáculo horrendo, com direito a plateia. A única coisa que me conforta é que não houve palmas e nem gritos de louvores. Não dessa vez.
Dois ou três amigos farão moção para que eu ganhe uma medalha, porque ensinei ao meu filho que homem de verdade não leva desaforo pra casa, aquele que sabe bater deve saber apanhar, que a vida é uma selva e deve-se escolher entre ser caça ou caçador, que a culpa toda é do Lula e usarão a dor em minhas costelas para, mais uma vez, maldizer o padre Júlio Lancelotti. Talvez seja convocado para dar o meu testemunho na Câmara Municipal de São Paulo.
Se eu quisesse me defender, poderia lembrar que meu filho também estava de bicicleta bem atrás de mim e que esmurrei um morador de rua, parecido comigo, porque estava preocupado com o meu filho e em nome de Deus, Pátria e família, tudo é permitido.
Meu filho ficou assustado e não sei o que ele guardará desse episódio, só sei que meu filho tem a tendência ao exagero ‒ qualidade da pouca idade ‒ e não sei o que ele dirá de mim e do outro homem ‒ amanhã e daqui a alguns anos ‒ e aqui, esperando ele sair do treino de futebol, não sei o que dizer para ele. Lembro meu pai dizendo que se um filho não for melhor que seu pai, era um verdadeiro desperdício ao mundo. Eu não consegui, espero que meu filho consiga. Talvez eu diga isso a ele, talvez eu implore que seja assim.
Pois depois de hoje, depois que esmurrei um morador de rua, tomem cuidado e se protejam de mim. Terão razão de mudar de calçada ao me ver passar. Chame a polícia preventivamente. Você estará no seu direito. E a polícia, com séculos de prática e experiências, sabe muito bem o que fazer comigo.
Se eu for acusado de assassinato, roubo, assédio, estupro, de ser um genocida, de ter colocado fogo em um indígena dormindo, de negar vacina em plena pandemia, de incendiar uma floresta e negar o aquecimento global, não ouse me defender, dizendo que me conhece, que coloca a mão no fogo por mim, que sou um bom pai, um bom filho, o melhor dos irmãos, um marido invejável, porque depois de hoje, que esmurrei e quase matei um morador de rua ‒ ele foi projetado para o meio da avenida e poderia ter sido atropelado ‒ só sei que sou capaz das piores barbaridades e isso me dá muito medo…
Talvez você não tenha dado este murro sozinho. Apenas reproduziu uma violência na qual estamos sendo cozinhados, por mais que pulemos da panela. Te abraço.