Haicais em movimento*

5 de julho de 2021 5 Por Leandro Marçal

*Hoje o cronista habitual está de folga. Meu grande amigo Carlos Roque nos brinda com um texto sensível, como de hábito. Tenho certeza que meus raros leitores e escassas leitoras vão gostar. Graças à literatura, tenho o privilégio de amizades tão qualificadas quanto a do Roque, um grande artista, um gigante amigo.


Essa semana, que ainda não passou, na manutenção o tempo presente, não sei se a minha atenção para com as coisas que me cercam estava mais aguçada ou a natureza simplesmente tentou me convencer, através de sinais, que a vida pode ter belezas fortes e potentes cruzando os nossos caminhos, caindo em nossos olhos e que não há outra alternativa, a não ser nos deixar inundar pelo breve e, em alguns casos, pelo eterno que há em nós.

Na segunda-feira, ao sair de casa, acompanhado pela minha esposa – trabalhamos juntos – cruzávamos a avenida, quando um casal de maritacas, no sentido contrário, mas também conversando, falando dos filhos e fazendo planos, pousou na palmeira da casa da Flora, nossa vizinha, que com tantas plantas escondendo o sobrado, faz jus ao seu nome. Ficaram muito próximos, esconderam-se no verde e se calaram.

Palmeira alta

Juntos para toda vida

Duas maritacas.

Na terça-feira, enquanto meus filhos gritavam do carro que iríamos chegar atrasado à escola e justamente em dia de prova, fiquei admirado com a enorme ninhada de andorinhas fazendo festa nas duas árvores em frente da minha casa. Depois da amurada, as águas do mar represavam as águas do rio, que subiam e encharcavam as pedras costuradas pelos gabiões.

Minhas vizinhas

Árvores em frente a casa

Ninhada de andorinhas.

Quarta-feira, eufórico, acordei os meus filhos – que adoram desenhar arco-íris em qualquer ocasião ou trabalho da escola para se verem debaixo do mais lindo arco-íris, com cores vivas e que escorava uma das pontas nas escarpas da Serra do Mar – onde já morei e a outra, entre as margens que separam Santos e Guarujá. As catraias já devem estar cheias de homens e de sono, como os meus filhos, que voltaram para cama se arrastando, mas com os olhos cheios de cores.

Sol entre nuvens

Iluminando a manhã

Lindo arco-íris.

Quinta, antes de voltar para casa, parei para comprar comida e enquanto esperava o pedido ficar pronto, aproveitei para desenhar o escuro da noite e sobre essa escuridão, que na verdade pendia para o azul, a lua; que só hoje fiquei sabendo que era a lua-morango ou a última superlua do ano,  se mostrava grande, exibida, elevando as águas dos rio e dos mares, na contenção dos gabiões e pedindo, quase implorando para ser vista pelos apaixonados, apreciada – de olhos nus ou de binóculo – e se possível, mordida, de tão tenra e saborosa. A comida também estava boa.

Vá até a janela

Na grandeza da noite

Lua tão perto.

Ontem, após sair do serviço, minha esposa, sem nenhuma pressa – como se estivesse a passeio – dirigia tão devagar, que um bando de garças, se despendido do mangue e do dia, nos acompanhou no corte do viaduto sobre a Via Anchieta, por um longo tempo – talvez por causa da cor do carro como se fôssemos mais um dos membros do belo grupo em V, de pluma e leveza. Ela falou de Deus. Fiquei em silêncio.

Fim de tarde

Perdendo-se nas nuvens

As garças brancas.

Não sei o que o sábado e o domingo me reservam – joguei na quina de São João – mas sei se que eu cruzar com um caramujo, um mamute ou com o grupo de moradores de rua que ocupam uma marquise estreita na esquina da casa da minha sogra e sempre nos perguntam como foi o nosso dia, em uma atenção tão rara, terei no bolso um pouco de esperança e no rosto, debaixo da máscara, um discreto sorriso no canto dos lábios grossos. Pode não parecer muito, mas depois de tudo que se foi e que se foi para sempre, que o ano passado arrancou de mim, dos meus irmãos e das mãos carinhosas de minha mãe, que a incompetência e a indiferença tiveram a coragem e desfaçatez de fechar o mais lindo sorriso que já conheci, garanto que é um grande progresso, portanto, digno de comemoração, mesmo que discreta.

A sorte está lançada

Prêmio escondido no rosto

Pequeno sorriso.


Carlos Roque Barbosa de Jesus

25 de junho de 2021


PS: Carlos Roque é autor de “Rio de Poucos Janeiros: Vinte e Cinco Poemas e Uma Página Em Branco”. A obra é ilustrada por 26 mulheres-artistas do Brasil e o PDF está disponível AQUI.