Em frente à prefeitura, o shopping

24 de janeiro de 2022 0 Por Leandro Marçal

Quanto mais verticalizam a cidade, menos do céu azul podemos ver num sábado ensolarado. Suando, passo por ambulantes, noto os motoristas de aplicativo se despedindo dos passageiros, subo os degraus pretos e cruzo a porta automática que dá acesso ao shopping da cidade, o único shopping da cidade.

Não fossem as cobranças dos familiares, com medo de uma emergência exigindo o meu lado motorista, nem teria feito o agendamento para renovar a CNH, vencida há mais de dois anos, desde que dirigir deixou de ser minha prioridade.

Ainda falta meia hora para o meu horário, tempo suficiente para tirar uma cópia do comprovante de residência num pequeno quiosque, em frente ao caixa eletrônico, na saída do Poupatempo. Enquanto espero, reparo nas pessoas circulando. Algumas olham vitrines, outras renovam seus guarda-roupas, há as que passeiam, apenas passeiam, porque desde a inauguração do único shopping da cidade, a torre-símbolo do comércio entrou no pódio dos raros passeios dessa província praiana.

Eu já tinha alguma noção de mundo quando esse lugar de adoração ao consumismo foi inaugurado, com muita gente comemorando a geração de novas oportunidades e uma passarela cruzando a avenida para levar motoristas do estacionamento às lojas na construção moderna. Desde então, tudo mudou lá pelos lados do centro. Na minha cidade, há burocracias que só podem ser resolvidas dentro do shopping.

Shopping, palavra inglesa tão incorporada ao português brasileiro, com lojas de roupas mais caras para pagar o aluguel no espaço privilegiado e mais seguro, com lanchonetes na praça de alimentação, com o único cinema da cidade, com estacionamento nos três andares. Shopping, ponto de encontro, ponto de referência.

Recebo o meu protocolo, porque a burocracia adora um protocolo, e antes de ir embora entro no corredor estreito, passo pelos orelhões e abro a porta ao lado do bebedouro. Como bom frequentador de banheiros públicos, posso atestar que nisso o shopping é acolhedor. Suas torneiras possuem sensores inexplicáveis, os secadores são modernos, e o mais importante de tudo: o vaso sanitário é higiênico, bem cuidado e com a privacidade necessária para momentos de profunda concentração.

Saio pela porta automática, desço os degraus pretos e reparo na prefeitura, do outro lado da rua. É sábado, está fechada. Voltando para casa, reparo nas placas que os donos do shopping contribuem para verticalizar a cidade, amontoando concreto e tapando o céu azul na paisagem.

O shopping da cidade fica em frente à prefeitura. Saindo da prefeitura, autoridades e funcionários dedicados dão de cara com o único shopping da cidade. Cada vez mais verticalizada. Só dá para ver o céu azul de umas poucas calçadas lá pelos lados do centro. Talvez nada disso faça sentido, mas talvez isso faça todo o sentido do mundo.