É o que tem pra hoje
Raul é um gênio incompreendido. Não falo do Seixas, mas do meu ex-colega de trabalho, entusiasta do zabeleísmo, uma filosofia de vida que merecia mais atenção da academia e dos intelectuais. Em momentos de reclamações, lamúrias, raiva, tristeza e falta de rumo, Raul ecoa a sentença definitiva: é o que tem pra hoje.
Gênio. Certeiro. Cirúrgico. Algumas desgraças não são questão de escolha, mas único meio de sobrevivência. Há mais de dois anos não vejo Raul, o gênio incompreendido, mas ainda levo seu ensinamento como estilo sagaz e fatalista de enxergar o mundo, sugando as energias dia após dia. Nas primeiras vezes em que ouvi a frase marcante, achei de um pessimismo exagerado. Logo eu. Com o passar do tempo, notei o quanto a filosofia é certeira.
Você começa a jornada enjoado pelo excesso de “bom dia” no grupo de WhatsApp da família, do trabalho, dos amigos. Pega um ônibus barulhento e lotado. Chega ao escritório, cumprimenta puxadores de tapete, pensa no salário baixo e nos desaforos do chefe inconveniente e arrogante, aguarda notificações no e-mail sobre o currículo enviado para outra empresa dos sonhos, toma uma bronca homérica na frente de todos e sente vontade de mandar metade da repartição à puta que os pariu. Mas tem boletos pendentes. Sua vida profissional está uma merda, mas esse emprego é o que tem pra hoje.
Durante a prática de exercícios físicos, o desânimo bate forte. Cansado, sente vontade de sair correndo do ambiente cheirando a suor e partir para o boteco, se encher de cerveja e torresmo. Mas rola um flashback com as indicações do médico: se continuar sedentário e com essa alimentação errática, o infarto será questão de tempo. É cansativo ir para a academia? É. Mas é o que tem pra hoje.
Posso ser criticado por um coach, caôch ou cocôaching. Sei que, às vezes, podemos mudar situações ruins por iniciativa própria. Mas não dá para negar: a vida é um eterno retorno ao é o que tem pra hoje.
Nos últimos meses, me pego injuriado. Busco quitar dívidas pendentes e me preocupo com a pandemia interminável. Até a chegada da vacina ao meu braço, minha rotina se resume ao casa-trabalho-casa. Nem lembro o que é vida social e fico ainda mais indignado com os good vibes despreocupados, saindo sem máscara e se aglomerando. É uma merda me ver obrigado a ficar recluso o tempo todo? Obviamente. Mas é o que tem pra hoje. Estou vivo e saudável, afinal.
Quando o que temos pra hoje já tínhamos pra ontem, teremos pra amanhã e pra depois de amanhã, pode ser preocupante. De qualquer forma, essa filosofia de vida me conforta dia sim, outro também. O zabeleísmo é um caminho sem volta.
Raul é um gênio incompreendido. Meu amigo há de ser reconhecido por mais gente. Por enquanto, o jeito é aceitar o marasmo do dia a dia, caminhando no campo minado das banalidades cotidianas. É o que tem pra hoje, eu sei.
Um sentimento que parece interminável. Bem exprimido. O constante balançar entre resiliência e sentimento de que não tem mais jeito.