Dor de dente

21 de janeiro de 2019 0 Por Leandro Marçal

A agência dos Correios fica a cinco quadras de casa. Ando pelas quatro primeiras sem sair da minha rua. No centro da cidade, as pessoas andam desordenadas e consumistas, tropeçam umas nas outras sem pedir desculpas e fazem das calçadas espaços insuportáveis. Viro à esquerda e depois de atravessar no semáforo chego ao local de destino com envelopes nas mãos.

Para fugir da loucura do tumulto entre lojas de roupas, móveis e eletrodomésticos, passei a cortar caminho e virar à esquerda dois quarteirões antes do caminho original. Na rua do mercado, inauguraram três grandes consultórios dentários na mesma calçada.

As placas são enormes e amarelas. Na primeira vez que passei por ali, senti alívio por fugir do trânsito de pedestres. Notei jovens uniformizados entre 18 e 20 anos abordando pessoas. Desviei do casal de meia idade e fui embora. Pensei no que levou à concorrência tão direta.

Quando mais novo, fui uma criança com cáries. Aprendi cedo a soletrar obturação, frequentei dentistas desde os primeiros anos de vida. Por sorte, o espaçamento entre meus teclados de mastigar são bons, nunca precisei de aparelhos ou tratamentos mais demorados.

No máximo, fiz cirurgias para tirar os dentes do siso e enfrentei aquela furadeira maldita. Mesmo nos dias de trabalho mais fácil, pedia anestesia ao ver o profissional olhando para mim com aquela arma em punhos. Certa vez, o convênio médico me encaminhou para um profissional com problemas de audição. Prometi nunca mais voltar lá depois de tanto avisar que a furadeira havia chegado ao osso ou à gengiva, não sei. A dor beirava o insuportável. Ele não ouvia, continuava seu trabalho e eu era incapaz de me mover. Meus familiares nunca acreditaram na história, até o dia em que deixamos de frequentar o consultório. Coincidentemente, depois de reclamações maternas semelhantes às minhas.

Tremia de medo ao ouvir dos mais velhos que a dor de dente só não era pior que a dos partos e das pedras nos rins. A escovação era tarefa religiosa. Diziam que canal era terrível. Sabia que um sorriso banguela ou amarelado era constrangedor. Meu diagnóstico anual indicou tudo normal com meu sorriso. Sou um sortudo em assuntos de arcada dentária.

Semana passada, precisei ir outra vez à agência dos Correios. Dessa vez, senti meu coração apertado. Sabia da abordagem quando passei por ali e um dos vendedores veio me cumprimentar. Se fosse apostar, chutaria 19 anos e o primeiro emprego do rapaz.

Perguntou se não queria um orçamento grátis para conferir o sorriso, esse cartão postal. Quase implorou, eu não tinha tempo. Cumprimentei-o, mas precisava ir embora. Na esquina, a consciência pesou.

Pude sentir a pressão de todos aqueles mais novos em seus primeiros empregos. Deviam ter metas de clientes – ou pacientes? – para entrar no grande lugar de placas amarelas. Precisam oferecer tratamentos caros para a economia girar. É possível que alguns deles separassem parte de seus salários para ajudar os pais a pagar contas de casa, como cansei de fazer. Acredito que cultivem sonhos de se destacar, ter melhores salários e uma vida profissional de sucesso.

Na terceira passagem por aquela calçada, notei que não eram os mesmos jovens me chamando para fazer um check-up com dentistas qualificados. Pensei na rotatividade. Poderiam ter sido demitidos por não cumprir metas. Tive vontade de entrar e fazer um raio-x, ver se esse dente meio torto não precisava de um aparelho urgente. E perguntar se a rapaziada de dias atrás estava em outro horário. Ou outro emprego.

Dali até a agência dos Correios, peguei os panfletos distribuídos por todos os compradores de ouro, vendedores de bijuterias e comerciantes do centro da cidade. Cumprimentei o atendente com voz mais alta que o normal. Fui mais cordial.

Voltei para casa com vontade de ter sido menos cuidadoso com os dentes, só para ajudar jovens trabalhadores a bater suas insensatas metas.