Direita volver*

10 de fevereiro de 2020 0 Por Leandro Marçal

*por Carlos Roque Barbosa de Jesus

Ao Roque Bispo Sobrinho

Meu primo Roque, tão alto como uma porta e que tem esse nome em homenagem ao meu pai, fundou o glorioso time Primos Futebol Clube. No clube, ele era múltiplo. Presidente, dirigente, técnico, juiz e, principalmente, dono da única bola de capão do bairro. Então era fácil encontrar times adversários e efêmeros, que se reuniam apenas para ter o prazer de chutar a bola de gomos de couro reluzentes e não as bolas de plástico, de gomos pintados e que eram vendidas na lojinha do Seu Manuel e da Dona Rosa.

Roque encanta com o seu sorriso largo e a única coisa maior que ele é o seu próprio coração – faz de tudo um pouco, não por ele, pelos outros, mesmo confundindo e prejudicando alguns pelo caminho ou como é mais comumente falado, desveste um santo para cobrir outro, por fim, uma pessoa de muita consideração e apreço, mas o considero, junto com a minha primeira professora, culpados por eu não ter sido o mais famoso meia-esquerda do mundo. Se não fossem os dois, meu nome, em qualquer livro de história, em qualquer levantamento ou pesquisa de desempenho, viria antes de Tostão, Rivelino, Zico, Zidane, Cruijff, Maradona e Ronaldinho Gaúcho.

Meu nome viria rodeado de estrelas.

Mas não. Nada disso aconteceu.

Quando comecei na escola, fui impedido de escrever com a mão esquerda. A professora Apolônia – que se parecia com uma coruja em prol dos cuidados e atenção – disse que não iria perder tempo com um único aluno canhoto, que eu iria atrasar a turma inteira, por causa da minha excepcionalidade.

Como de costume, a esquerda não era bem vista, tanto agora como em mil novecentos e setenta e cinco. Passei meio ano da primeira série com a mão esquerda amarrada na cadeira de ferro e os outros seis meses, sentado em cima dela, até que, a mulher que me ensinou a escrever, teve a certeza que eu havia endireitado definitivamente.

Arrumar um corpo é difícil, dá muito trabalho, mas não impossível. Vejam o caso do temido Frank, da querida Mary.

Em campo, meu primo, que hoje luta contra um câncer, como se fosse um daqueles clássicos zagueiros botinudos, dos campinhos sem grama das várzeas das cidades, que no mesmo chute estouravam a bola, rachavam o atacante e impediam o vento de seguir o seu caminho, sempre me escalava na lateral direita, o que tornava aquele pedaço uma verdadeira avenida, para o ataque do time adversário, para o desfile da Mangueira, para a disputa do grande prêmio da Fórmula 1. Toda bola por ali, já era considerado meio gol.

Não acertava um passe, um lançamento e temia até um simples recuo para o goleiro. Porém eu era da família, o nome do time preconizava esta relação e então eu continuava no jogo.

Este suplício durou até o primeiro professor de Educação Física me escalar do outro lado do campo e me informar que eu era canhoto.

Eu me transformava no primeiro exemplar de, provavelmente, um estudo avançado de exterminar os canhotos da face da terra.

Ali era o meu lugar, a faixa esquerda, brilhante em seu caminho até o horizonte. Cheguei a jogar com certa desenvoltura, mas já era muito tarde. O corpo enganado lutava contra o talento nato. A perna esquerda até hoje se sente amarrada e a direita quer voltar a sua primazia, no tempo e no campo, em declive, que era vantagem para o time de cima.

Isto me fez aliado dos cães castrados, entristecidos por saberem do potencial que lhes foi suprimido, mas que de alguma maneira ainda reverbera e resiste no tremer das pernas, quando pensa em quão feliz poderia ter sido.

Não entrei para a história do futebol mundial, mas o que me alegra profundamente e que tenho por certo e justo, na medida da fé e da esperança, é que meu primo ficará muito bem e que para ele, daqui a algum tempo o câncer será apenas mais um dos signos do zodíaco e também, mesmo aos trancos e alguns barrancos, a minha alma, diferente com o que tentaram e em parte conseguiram, na mutilação do meu corpo, nunca mudou de lado.