Desta terra, não quero nem o pó

15 de outubro de 2021 0 Por Leandro Marçal

Zapeando na tevê por assinatura, parei quase no fim de um filme repetido. Como bom entusiasta do cinema nacional, o guia abaixo da tela avisando sobre a exibição de Carlota Joaquina – Princesa do Brasil, lançado em 1995, me fez estacionar por ali mesmo.

Numa das últimas cenas, a protagonista que dá nome ao longa-metragem, interpretada pela sempre genial Marieta Severo, bate os sapatos antes de arremessá-los para o fundo do mar. Sem dó e com um portunhol mambembe, solta a clássica frase: “Desta terra, não quero nem o pó”.

Mistura de nojo da nossa gente com a vontade de nunca mais olhar para trás, para esse lugar de bárbaros, segundo sua visão colonizadora. Ela pode ter sido uma cretina, a Carlota Joaquina, mas seu desabafo, fictício ou não, já fez muito sentido em algum momento de nossas vidas. Da minha, pelo menos.

O sentimento de “não quero nunca mais pisar aqui” e “graças a deus não preciso mais olhar na cara dessa gente cretina”. Quem nunca? Depois da demissão, ao término do relacionamento, saindo da casa da família ou mesmo ao ser mal atendido no pequeno comércio de bairro. Que seja. A vontade de bater os tênis e não levar nem o pó daquela merda é grande.

Outro dia, me senti ofendido ao visitar um casal de amigos. Me pediram para entrar descalço porque tinham acabado de passar um pano na sala. “Como assim? Trago dos pés à cabeça meus erros e acertos como parte da minha história e limpar o chão é tão corriqueiro”, pensei. Dei uma de desentendido e não mostrei minhas meias pretas e furadas. O constrangimento foi rápido, valeu a visita e não sujei o chão.

Na hora de ir embora, pode ser diferente. Quando não queremos olhar para trás, o medo é pior do que virar estátua de sal. Dá vontade de bater os calçados, queimar a roupa, apagar da memória, explodir o lugar e fazer sumir as indesejadas das gentes. Sem remorso, sem dó, como uma Carlota Joaquina injuriada, arremessando os traumas para bem longe.

“Nem o vento daqui presta”, brincou um amigo ao me visitar. Nascido e criado numa cidade mal vista, a piada é provocativa à minha terra mal planejada. Quando foi embora, se despediu cordialmente, encarando as ruas de dentro do ônibus. Prometeu voltar aqui no tradicional boteco de fim de ano.

Do pó viemos e ao pó voltaremos. É o que dizem. Mas para evitar a poeira do passado, faz bem lavar o tênis. E a camisa. E a calça. E a roupa toda.