Depois do Mistral*

29 de maio de 2020 1 Por Leandro Marçal

*Há pouco mais de um ano, o Vinicius Miraldo publicou aqui O Mistral, contando um pouco de sua experiência trabalhando fora do Brasil. Nesse novo ensaio, ele trata do que aconteceu de lá para cá. Se não leu o primeiro texto, pare, clique AQUI, e depois volte para ler esta continuação.

Escrevo novamente. Dois anos e quatro meses se passaram desde os episódios descritos no texto O Mistral. Concluí o anterior pensando em mim como um homem-quebrado, alguém perdido nas decisões e inconformado com o resultado de tudo que aconteceu.

O hiato foi importante: muita coisa aconteceu. Pessoas podem ser reconstruídas? Eu responderia que sim, mas você não será o mesmo. Aquele click mudou a minha percepção da existência e fez com que meu foco mudasse. Encontrei dificuldades, sim, mas dei espaço para o tempo e para a beleza das coisas verdadeiramente sólidas: palavras, abraços, sorrisos, sinceridade, fracassos, entre outras coisas.

Enviei seis cartas pelo correio. Cada uma endereçada a uma pessoa que fez parte da minha vida durante o Mistral. Enviei, além de um texto, fotos e falei de como a minha vida é hoje. De certa forma, senti falta deles. Minha vida era diferente e eu não era tão próximo da escuridão do mundo.

Sempre que olho para o passado, há certa nostalgia presente. Eu entendo, portanto, que não tenho valorizado o que tenho vivido nesses vinte e seis anos. Descobri que preciso olhar para o agora e fazer as pazes com meu passado. Essas cartas são, portanto, uma reconciliação com as piores coisas que vivi.

Hoje, eu trabalho para uma empresa japonesa, a fusão de três armadores asiáticos. Um armador é uma empresa que freta containers para outros países. Sou Controlador Pleno de Custos. A minha função é preparar relatórios com todos os custos que a empresa paga, reportar para gerentes, diretores e o vice-presidente de operações, além de buscar, em meio a tudo isso, oportunidades de redução de custos.

Eu uso o Excel para preparar esses relatórios. Descobri que sou muito bom e muito rápido para expor as necessidades das empresas. Mais interessante ainda: produzo estudos de impacto econômico quando a empresa vai ter um novo contrato com um fornecedor. Salvaremos dinheiro? Perderemos? Eu sou a pessoa que responde.

Formular as estratégias de uma reunião de negociação é uma tarefa difícil, mas não estou sozinho. A empresa me consulta para receber os números e os gerentes tomam a decisão. Esses encontros podem ser agressivos ou suaves. Depende do local. Nesse caso, de um dos vinte e dois países ou oitenta portos. Embora hoje esteja claro como as coisas devem ser feitas, nem sempre foi assim.

A agilidade que eu tive para desenhar o formato dos relatórios fez com que eu os criasse muito rapidamente. Sobrava muito tempo para monitorar os números e verificar os custos que estavam sendo pagos.

Meus dois chefes são calmos e quietos, o que no início pareceu ser antipatia comigo. Lembrei a mim mesmo que eles ocupam cargos altos na empresa e, por isso, não tinham tanto tempo para pensar em tudo e, muito menos, para me agradar. Percebi, então, o privilégio que seria trabalhar com duas pessoas que tinham a minha idade em experiência.

A primeira vez que nos encontramos foi na apresentação de um case que montei. O processo seletivo para a vaga tinha um teste de Excel, a apresentação e a entrevista. Realizei tudo no mesmo dia.

O japonês (diretor de operações), o chileno (vice-presidente) e o RH pediram uma apresentação com propostas para a posição. Eles queriam alguém que já tivesse uma bagagem. Fiquei tenso de não ser bom o bastante, mas dei meu melhor. O coração da apresentação foi um relatório desenvolvido por outro time do qual fiz parte no passado. Por uma grande coincidência, era exatamente aquilo que o chileno queria.

Fui incisivo ao responder e fazer perguntas. Queria clareza em tudo que eu iria viver. A vaga era para São Paulo, trabalhar alguns dias na Baixada Santista era uma realidade. Fiquei com medo, um medo que não existia quando conheci o tal coordenador de RH no LinkedIn.

De forma totalmente despretensiosa, enviei uma mensagem dando uma de “João-sem-braço”, perguntando onde as vagas eram publicadas. A razão pela qual fiz isso foi uma fuga da realidade que eu vivia.

Enquanto trabalhava em uma concorrente, sofria alguns problemas enquanto me recuperava da depressão, crises de ansiedade e pânico. Queria uma mudança e, por isso, pensei em novas possibilidades.

O Mistral me deixou preparado para solidão, mesmo que isso significasse estar em um lugar cheio de pessoas onde eu não sentia que poderia ser compreendido. Ainda estava aprendendo como usar essa experiência e estava tendo dificuldades para ficar bem.

Falar inglês, ser graduado e criativo: três características que as pessoas que trabalhavam comigo nessa empresa (a chamarei de Amarela) não tinham. Aliás, havia uma quarta que quatro pessoas brigavam para ter: um cargo de analista.

A culpa não era minha de ter esse cargo e eu não era bom nesse trabalho. Repetição para pessoas criativas é como pedir para um porco subir uma árvore várias vezes e dar um salto-mortal quando voltar ao chão.

Portanto, uma coisa era certa: eu cometia muitos pequenos erros que tinham um custo alto e cada vez que eu passava por isso eu ficava em pânico. Em alguns momentos, tinha apenas vontade de fugir ou desistir. Meu coração ficava acelerado e tremendo. Ligava para alguém que pudesse conversar e tentar me acalmar, mas, de forma geral, isso só acontecia dois dias depois.

Ao mesmo tempo que ficava nervoso, eu virava motivo de piada por dois grupos: os não-promovidos e as pessoas que se achavam donos da Amarela. O primeiro grupo achava que estava na escola: criticavam meu trabalho mal executado e minha falta de atenção; o segundo queria me dar lições de moral e me colocar como pauta das reuniões.

De fato, alguns deles me davam conselhos e eu sentia que eram pessoas que eu podia contar, mas três dos não-promovidos não. Talvez, em alguns momentos, eu só era um alvo para que eles descontassem a raiva que tinham pela empresa. Eu era grato por ter um emprego e ter benefícios em um país onde muitas pessoas não o têm. Eles, por outro lado, não.

Se eu aceitasse almoçar com as pessoas erradas, ouviria reclamações durante os infinitos três mil e seiscentos segundos de refeição. Aquilo não me abalava, mas era desgastante. Conheci ótimas pessoas lá, mas eram poucas no meio de tantos babacas e me arrependi por não ter sido mais duro nas respostas.

Havia uma pessoa que eu não queria chatear de forma alguma: o coordenador do departamento. Ele havia me convidado para fazer parte do time depois de termos nos conhecido no LinkedIn e eu queria fazer um bom trabalho.

Ele, sem saber, me livrou de um inferno, pois eu estava trabalhando em uma empresa completamente desorganizada que me fazia ter crises de pânico todos os dias. Foi a primeira vez que fui trabalhar desde o Mistral.

A minha função ali era fazer basicamente o que fazia na Amarela, mas eu não acreditava que era capaz. No primeiro dia, fiquei tão nervoso que minha irmã foi me buscar e chorei no carro até chegarmos em casa.

Esse local de trabalho era um pesadelo: desorganizado, sem recursos para aprender e cheio de pessoas arrogantes que queriam dar um golpe de judô umas nas outras diariamente. Como se isso não bastasse, o sistema que eles utilizavam não funcionava bem, meu chefe era despreparado e me colocaram em um horário ruim.

A cereja do bolo era o RH: primeiro, não me disseram que a vaga era para alguém em horário que ia até às 20h. Descobri apenas depois que aceitei. Tive uma breve discussão com a gerente de RH, onde ela sugeriu que não “precisava de mim”, pois havia encontrado “excelentes profissionais” para preencher a vaga.

Em segundo lugar, era comum pessoas serem demitidas por cometerem erros bobos. Nesse momento da minha vida, nunca vi tantas pessoas serem mandadas à rua. Sentia insegurança constantemente, mas depois de um tempo, ficar desempregado novamente não poderia ser pior do que continuar ali.

Nesses vinte dias conheci Arlete. Ela tinha quinze anos de experiência na área e, por falta de opção, tinha aceitado trabalhar como assistente. Notei que não davam o devido valor que ela merecia. Era comum vê-la resolver situações complexas usando sua experiência, mas naquele oitavo andar ela era apenas uma assistente, cuja vivência era pouco aproveitada.

Parecia que todas as pessoas estavam desesperadas para conseguir alguma oportunidade. Nunca gostei de trocar de emprego: ambientes novos causam nervosismo em mim, sempre causaram.

A vida nunca tinha estado tão triste. Pensava até mesmo no filhote que estava em casa: Oliver, o beagle. Um presente da minha irmã que veio para realizar o sonho que tínhamos de ter um cachorro.

Um mês antes de eu entrar na empresa-bagunça, ele era minha companhia em casa. Os únicos compromissos que eu tinha eram as sessões de terapia e a visita à psiquiatra a cada dois meses. Nos primeiros dias, ele só dormia no meu colo. Duas semanas depois, tudo que ele queria era correr, morder e brincar.

Ele só virou um “cãopanheiro” quando atingiu oito meses de idade. Nesse momento, ele ficou mais calmo e, então, podemos curti-lo como um amigo. O dia que chegou em casa foi, sem dúvida, um dos mais felizes da minha vida.

Eu havia feito contato com o homem que o venderia, mas, subitamente, alguém o havia adotado antes que eu pudesse ir buscá-lo. Minha irmã receberia algumas amigas no fim daquela semana e, quando elas chegaram, ela me acordou desesperada para que eu pudesse cumprimentá-las.

Quando cheguei à porta de casa, havia uma caixa e, quando a abri, ele estava ali. Uma bolinha assustada, me olhando com os olhos brilhando, sem saber o que acontecia. Eu nunca tinha cuidado de um animal antes e seria um “pai de primeira viagem”.

Hoje, ele é meu aumigão. Só quer dormir comigo. Adora ficar próximo e, quando não o deixo entrar em meu quarto, chora até eu deixá-lo entrar. Sentado em minha cadeira, pede para subir no meu colo.

O Oliver, junto com a minha irmã, família, Rebeca e amigos, se tornaram as coisas mais importantes da minha vida. Esses meses deixaram claro quem eram as pessoas que estavam próximos de mim porque me amavam e as pessoas que só eram curiosas.

Refletir sobre isso me deixava triste constantemente e fazia com que sentisse solidão. Mesmo assim, enxerguei que é melhor estar sozinho a estar próximo de pessoas que não se importam de verdade.

Eu as excluí de minha vida. Foi a melhor decisão que tomei em muito tempo.

Há fragmentos do que é bom e ruim em tudo. Os dois meses do Mistral foram eternos, mas não foram piores ou melhores do que os momentos que vivi nos dois anos seguintes. Talvez, eu nunca tenha consegui fugir dele de fato.

Continuo no Mistral, mas ele não continua em mim.