Crônica de um rebaixamento anunciado

7 de dezembro de 2023 50 Por Leandro Marçal

Morar na Ilha de São Vicente me obriga a explicar o meu endereço pertinho da prima rica, Santos. Morar quase no Centro da cidade de São Vicente me permitiu, meses atrás, entrar na estação do VLT e em menos de vinte minutos encontrar um amigo, caminhar até a Vila Belmiro para esperar, sem cansaço, o começo de um raríssimo jogo do São Paulo como mandante nesse estádio tão emblemático quanto aconchegante.

O Santos Futebol Clube é parte da rotina, um assunto frequente nas rodas de bar, nos papos entre amigos. Aliás, se eu fizesse uma estatística de quantos amigos e amigas torcem por esse time, pelo qual sou incapaz de torcer contra, não seria surpresa ter mais da metade dessa gente me acompanhando ao longo da vida vestindo preto e branco.

Não é que eu moro na Baixada Santista: sou daqui, é minha identidade. Onde o time local toma conta do noticiário, numa compensação ao descaso da imprensa da capital com a repercussão dos fatos e mazelas do orgulho da província. São edições do jornal do almoço dedicadas ao Santos, seguidas de programas esportivos intermináveis falando um pouquinho de atletas da região, um poucão do atual motivo de poucos risos, mas muitas lágrimas e melancólica emoção.

Sei que o futebol se alimenta das rivalidades, mas tive dois ou três empregos que só existiram porque existe o Santos. Tive muitos amigos trabalhando no clube. Hoje, ainda tenho alguns amigos vivenciado o ambiente complexo do futebol profissional a poucos minutos da praia do Gonzaga. O meu pai é santista, do tipo que assiste a todas as partidas no ano, do tipo conformado, do tipo com histórias para contar dos tempos de frequentador de estádio.

Como odiar a casa que pariu o maior de todos? Quem ignora o fenômeno da natureza que assombrou o mundo desde o fim da década de 1950?

Deu pena. Parecia o ápice da brutalização dessa região cada vez mais hostil a tudo que não dá lucro, se fantasiando de moderna. Nem dá nem para rir ou fazer piada. Ninguém decente faz chacota de quem passa fome. Ninguém decente tira sarro de pacientes moribundos. Morreu o assunto da cidade. Olhando os prognósticos, parece a primeira de outras mortes.

A piada interna da Luane pé frio, criando memórias para a Aurora nas arquibancadas em cada partida nos últimos anos. O Vittorio, sobrinho da Camila, de olhos inchados por tanto chorar de ontem para hoje. O Carlos Roque e a memória com o Pelé. A Luciana rememorando o pai. O Gustavo Freitas, o Raphael Rinaldi, o Victor, o Fernando Vella, o PH, o Rafael Cicconi, o Douglas Vital, o Leonardo da Hora, o Rafael Freitas, o Caio Ruscillo, o Bruno jornalista, o Vinicios, o Raoni. Tanta gente, tanto luto.

Justamente no Brasileirão dedicado à memória do Pelé. Jogadores e dirigentes deveriam sentir vergonha. Ou pelo menos “vergonha”, com as desculpas a quem se sentiu ofendido redigidas por suas boas assessorias de imprensa. Mas esse constrangimento só nasce em quem tem dignidade.

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