Carpenters

10 de dezembro de 2018 0 Por Leandro Marçal

Foi um dia atribulado. Reunião logo às 9h, seguida da primeira confraternização de fim de ano. Serão várias nas próximas semanas. Não consigo inventar uma boa desculpa para me livrar da maioria delas. Havia bebido além da conta na noite anterior, quando desabafava com um velho amigo sobre novos problemas. Na festinha, nada de álcool, era muito cedo.

Foi uma semana atribulada. Dias antes, uma reunião rápida decretou o fim de uma parceria profissional, dessas que destroem velhas amizades e sugam contas bancárias. Poucas palavras com quem tanto se falava no início de um projeto que tinha tudo para dar certo, mas que também tinha tudo para dar errado.

Curtia a ressaca daqueles dias. Deitei na poltrona da sala para estudar um pouco. Faria uma prova desgastante dali a três dias. Minha cachorra, cega há alguns meses, ficou esparramada ao meu lado. Há uma almofada para ela se sentir mais confortável. Invejo o apego canino aos panos, como o que cobre aquele monte de espuma.

Minha irmã fazia uma das últimas provas do semestre na faculdade. Minha mãe demoraria na missa. Meu pai chegou cansado. De férias, conseguiu um trabalho para complementar a renda em um mês atribulado. Vivemos um ano atribulado.

Ele foi até a cozinha, é pontual com o café do fim de tarde, começo de noite. Em casa, não jantamos. Meus pais viram em uma revista antiga que é melhor comer pouco demais horas antes de dormir. Faz bem para a saúde, evita a insônia.

Ligou o aparelho de som com o pen drive espetado. Nele, eu e minha irmã colocamos suas músicas do passado. Decorei a maioria delas, de tanto ouvir os CDs comprados em outras décadas. Um catálogo com centenas de discos chegava uma vez por mês na minúscula e primeira casa da minha vida. Ali, escolhíamos os sons enviados por correio e cobrados no cartão de crédito.

Close To You (They Long To Be), do Carpenters, soou pelos cômodos. Quando essa música toca, ninguém ousa falar nada por aqui.

Perdi a concentração nos estudos, parei de passar a mão no pescoço da minha cachorra, que me buscou com os olhos cegos. Ela respirou fundo. Ouvimos. Uma parede branca com um quadro pendurado é a divisão entre a sala e a cozinha. A música tocou até o fim e só então meu pai ligou a cafeteira.

Não bastasse a beleza melancólica da canção, pensar na vida da vocalista, Karen Carpenter, rende papos reflexivos. Conversei com uma amiga escritora sobre Karen. A busca por uma vida comum, o tratamento dado pelo pai, a liderança na banda, a transição da bateria para o vocal, o casamento relâmpago, a anorexia, sua morte mais triste que a média.

Ouvir Close To You me dá vontade de chorar. Não importa o lugar ou a ocasião. Nesse dia, o desejo pareceu mais forte que em outros. Pelas decepções profissionais e amorosas, por palavras não cumpridas, pelos planos sabotados, por minha cachorra, pelos da minha casa, por meu ofício solitário, pelas angústias diárias. Por Karen.

Foi uma vida atribulada, a dela. Todas são, lembrou minha amiga escritora. Todas são.