A morte não lhe cai bem*

25 de dezembro de 2018 3 Por Leandro Marçal

*por Carlos Roque Barbosa de Jesus

Na pequena cozinha; do apartamento de dois quartos, na Encruzilhada, que possui as paredes apinhadas de quadros de flores e paisagens pintados por ela durante boa parte de sua vida; enquanto fazia o café enfileirou as datas das mortes do primeiro marido, 1972, da mãe em 1995. Do pai em 1990, do Nilton, o segundo marido em 2006 e do irmão mais velho no ano passado e emendou falando do sonho com o pai morto lhe dizendo que irá morrer em breve e que o outro irmão morreria um pouco depois. A luz que entra pela janela lateral ajuda a ressaltar uma dose equilibrada de charme ainda contido em uma senhora de setenta e seis anos, que traz os cabelos brancos, curtos e levemente despenteados.

O café estava muito bom.

Fala de sua participação como voluntária no Fundo Social de Solidariedade e dos cincos anos de trabalho no Programa Vovô Sabe Tudo, na Igreja do Valongo e o gosto pelo tricô e pelo crochê, sem precisar detalhar a sua predileção pela pintura e os muitos anos de acompanhamento em centros espíritas.

Terezinha Ribeiro de Souza, que hoje dorme à base de calmantes, deveria ter tudo na vida, menos um nome no diminutivo.

Natural de Uberaba, se diz devota de Nelson Rodrigues porque às vezes cospe umas barbaridades que parecem terem saído da boca do anjo pornográfico. Puxa da memória três acontecimentos para exemplificar este alinhamento. Aos dozes anos, passava na porta da Sra. Iolanda, mulher bonita e mãe de duas meninas mais lindas ainda e falava para as amigas, com muito orgulho, que ali morava a amante do seu pai. Também pediu para o segundo marido que se fosse traí-la, fizesse isso de São Vicente prá lá e não embaixo do seu nariz e em uma brincadeira do destino, foi até a cidade de Registro confrontar uma mulher que a perseguiu, mesmo sem querer, ao ter-se envolvido com o seu primeiro marido e estava se engraçando com o seu segundo marido. Uma japonesa que já foi muito bonita.

Ela também já foi bonita, já foi muito vaidosa.

O seu grande sonho de adolescente era casar com o homem perfeito e aos vinte e quatros isto realmente aconteceu. Seu primeiro marido, Manoel e português, na grande redundância, era lindo e se parecia com Tony Curtis, ator de Quanto Mais Quente Melhor e da série de filmes Os amores de Paulínia. Era atlético, gostava de praticar esportes, auditor bancário, com dinheiro e muitas propriedades. Nada deu certo. Um ano depois de casada nasceu o único filho, hoje distante, e por imposição do marido, sua única tarefa era cuidar do rebento, enquanto ele fazia uma nova faculdade e se envolvia com a japonesa fatal.

O casamento durou cinco anos, quando Manoel se afogou em um lago em Brasília, durante um piquenique com os funcionários do banco, no qual ele realizava uma auditoria para saber de quanto foi o desfalque realizado por um ex-gerente.

Ficou viúva e rica. Comprou carro, jóias e viajou muito e foi durante uma viagem de navio para Usuahia, na Argentina, que decidiu, como só as pessoas resolutas podem fazer, que quanto voltasse iria se casar novamente.

Dito e feito, conheceu Nilton, um italiano baixinho, gordo, meio careca em uma sessão de cinema. No cinema da praia, perto da divisa entre Santos e São Vicente, e como quase todos os cinemas de rua, hoje ocupado por uma igreja evangélica neopentecostal. Ele era totalmente diferente do primeiro marido. O primeiro não fazia nada, o segundo marido fazia tudo, com ela e por ela.

Trinta anos de felicidades, que não trocaria por nada, talvez pela oportunidade de vivê-los novamente.

Acentuando a diferença com primeiro marido, quando morreu Nilton não deixou dinheiro, nem propriedade, mas deixou maravilhosas lembranças de viagem, jantares, amores e cumplicidades. Ele era o marido do sim.

Fez questão de esclarecer que até hoje vive com a pensão e com parte dos bens deixados pelo primeiro marido, mas se alimenta das memórias deixadas pelo segundo.

A justiça e a injustiça caminham lado a lado, em quase todas as situações em que há a mínima intervenção humana. A filiação e o sentimento de abandono e vergonha.

Surge de dentro da xicará de café, já vazia, a fé em Nossa Senhora, na prece pedindo que console seu espírito e não a cura do seu corpo – velho e cansado – e a mediunidade se junta à luz, no recado do pai, tanto a ela, quanto ao filho; que dividem esta única particularidade; que estar morto é mais difícil do que se espera.

Sim, Terezinha Ribeiro de Souza, está morrendo.

Sim, o recado de seu pai acertou na mosca, na outra e não nessa, que pousou agora na mesa da sala de estar.

Semana passada recebeu a notícia que está com cancêr na medúla osséa e deve começar a quimioterapia em breve.

Irá enfrentar isto sozinha, porque não tem ninguém, não quer incomodar ninguém, não quer dar trabalho para ninguém. Fará o que for possível, mas acompanhada apenas por Deus. Olha para mim esperando uma pergunta sobre a família, os laços e os nós e repete com maior convicção — Não tenho ninguém!

Confessa que nunca foi uma mulher fácil, na verdade foi uma pessoa casca-dura e se sente presa nesta vida, sem possibilidade de sair, de caminhar, como os meninos encurralados no fundo da caverna na Tailândia, mesmo agora, que podia fazer de tudo, falar de tudo e não precisa agradar ninguém, recai sobre ela este sentimento agudo de imobilidade.

Não sabe se morrerá neste ano, em 2019 ou em 2024. Não perguntou nada ao médico sobre tempo, datas e horas, o médico pode confirmar o prognóstico de seu pai, mas aparentemente não tem medo da morte, nem revolta com a doença e acha que já viveu bastante e que morrer será bom, pois quer fazer algumas perguntas para alguns que se foram há muito tempo e rever outras pessoas, que se desfaz em saudades. Não diz nome nem filiação, não fala de amores, nem de ajustes de conta, muito menos dos porquês.

Senta-se no sofá, com as pernas dobradas, o corpo inclinado, apoiado nas almofadas coloridas, ganhando um ar de pin-up pós-moderna. A luz do dia já se foi e no início da escuridão, de meio da tarde, de prédio pequeno circundado de prédios enormes – situação cada vez mais comum nesta cidade de muito mar – ela guarda um último sorriso, rodeada de flores, cores e a leve sombra de um perfume, para que eu não esqueça de chamá-la hoje, amanhã e no dia em que ela se for, de Terezinha, a grande. (09.07.2018)
                                                                                         

NOTA DO BLOG: Terezinha Ribeiro Souza morreu na véspera desse Natal. Ela ficará muito feliz pela homenagem, escrita por seu (e meu) grande amigo Carlos Roque.