A Matriarca da Roma Negra*

23 de novembro de 2023 3 Por Leandro Marçal

*O texto abaixo foi escrito pelo artista (artista!) Carlos Roque.

Vem cá, Luiza, me dá a tua mão

LUIZA, de Antônio Carlos Jobim

Minha prima Evilásia veio de Minas e propus que fôssemos visitar a nossa tia Bel, que está sob os cuidados da prima Gracinha.

Não sei dizer o porquê deste apelido. Ela não se chama Beatriz, muito menos Isabel, e sim Luisa.

Parei por um momento e telefonei para a minha mãe, que acha que é porque Ela nasceu depois que minha avó perdeu um casal de gêmeos logo após eles terem nascido e que, pelo pouco que ela sabe, tem a ver com Cosme e Damião. Portanto, talvez minha tia carregue o último resquício de umbanda e candomblé da minha família, que passou pelo protestantismo calvinista e hoje está dominada pelo pentecostalismo de ocasião.

Especulações também dão certo sentido à vida.

Outro mistério sobre a minha tia é a idade. Não chegamos ao consenso se ela tem 95 ou 105 anos.

Pelo lado paterno, Ela é a mais velha e a última sobrevivente. Meu pai era o caçula e se estivesse vivo teria 86 anos e entre essas duas pontas existiram 8 irmãos e irmãs. Como o lema era “um fora e um dentro”, acredito que Ela ainda não chegou aos cem anos.

Conta-se (conto também) que quando ela veio do interior da Bahia trazida pelos irmãos, Tio Zé, o que estava há mais tempo em Cubatão, foi com Ela “tirar” a carteira de trabalho e propôs a mudança da idade, dizendo que não ficava bem para uma mulher solteira toda aquela idade. Nessa brincadeira, dizem que se foram pelos menos 10 anos a menos e, em contrapartida, mais 10 anos de trabalho.

Minha Tia Bel também é a minha madrinha.

Eu não gostava da minha tia.

Não gostava da minha madrinha e por um tempo idealizei o meu padrinho, que não conheci. Minha mãe me contou que ele foi embora porque minha tia não quis casar com ele.

Minha tia, minha madrinha não se casou.

Ela teve dois filhos que não são seus. Eram filhos da patroa.

Como costume ainda arraigado, ao chegar da Bahia minha tia foi ser empregada doméstica em uma casa em Santos, na Vila Belmiro, bairro onde moro. Só percebi essa pequena ironia agora.

Ela aparecia em casa de 15 em 15 dias, mas às vezes os intervalos eram maiores, bem maiores.

Eu não gostava da minha tia porque tudo o que fizéssemos Angélica e Jadinho já tinham feito. Tinham feito primeiro e muito melhor.

Odiava qualquer coisa que fosse precedido por este dois nomes. Roupas, revistas, brinquedos e móveis.

Juntos, eles eram aquele tipo de primo que faz tudo certinho, mas o pior é que neste caso eles nem eram parentes e tampouco eram pretos.

Também contribuía para esse meu não gostar que, em suas visitas, minha tia, mesmo perto, se mantinha distante. Ela nunca dormia em minha casa, e sim na casa da Tia Maria, mãe da prima Gracinha.

Posso garantir que só tive bons olhos para a minha tia depois que ela se aposentou, e isso deve ter uns vinte e cinco anos. Por quase metade da minha vida, não dei a mínima para a minha tia.

Só depois de tê-la por perto, de saber que ela sabia sorrir quando contava suas histórias, do meu pai, dos meus tios e avôs no interior da Bahia, fui aprendendo a gostar de uma mulher fisicamente muito parecida com o meu pai. Gosto muito do meu pai e da sombra que ele faz.

Também foi necessário um pequeno entendimento das relações de extrema dependência e subserviência entre patrões e empregadas domésticas e como isso se confunde em perspectiva de uma pretensa família, que nunca se forma realmente. E principalmente, como ela deve ter se sentindo tão sozinha, tão carente, tão necessitada de um carinho que não soubemos dar, sentada na cama, ouvindo rádio, naquele quartinho no fundo da casa.

Nunca perguntei, mas aparentemente a relação das minhas primas, as filhas da tia Maria, com a tia Bel tem um nível de intimidade mais amplo e melhor estruturado. Como disse, quando minha tia Bel ia para lá, ia para ficar e não de passagem, como na minha casa. Às vezes almoçava em minha casa, outras jantava e em seguida, partia.

Minha prima Gracinha está quase cega, mas sinto que ela vê a nossa tia com muito carinho, talvez como uma segunda mãe, já que a Tia Maria também morreu há muito tempo. Fomos devastados desde muito cedo.

Durante a visita, me colocaram para fora de casa, para que pudessem trocar as roupas delas. O cuidado é sempre muito feminino.

Minha prima Evilásia, conhecida como Damiana, porque tinha um irmão gêmeo – o Cosme – usa bengala por causa de problemas no joelho.

Sempre precisei de uma desculpa para visitá-la. Chamava minha irmã Keila, que sempre gostou de todo mundo, esperava minha mãe me chamar para ver a sua última cunhada, e também a minha esposa, que queria saber se ela estava bem. Acho que é um tipo de medo. Medo de ser confrontado e não ter o que dizer.

Gracinha fez um relato de como a tia se encontra.

Está comendo bem.

Fica deitada a maior parte do tempo.

Fala pouco e não se lembra de quase nada. Esqueceu que adorava cheirar rapé.

Em um momento, Tia Bel me olhou, sorriu e falou meu nome. Na verdade ela sempre me chamou de Carlinhos e perguntou se eu tinha me casado.

Gracinha fingiu que ficou brava, porque a tia quando fala com ela, pergunta quem ela é. Rimos e eu disse que a Gracinha era a Genivalda, que mora no final da rua. Rimos.

Mostrei a foto da minha família e ela disse que a minha filha é linda. Qualquer pessoa que conheça a minha filha terá a mesma opinião.

Depois perguntou dos meus irmãos e irmãs – Ela não sabe que a Keila se foi – e logo depois de um sorriso, mergulhou para dentro dos próprios olhos e já não me viu mais.

Mas foi muito bom saber que eu ainda estou nela. Em algum canto, eu flutuo em suas parcas lembranças. E isso, se tiver outro nome que não seja amor, está muito errado.

Foi muito bom revê-la, ver o meu pai nela mais uma vez e beijá-la sem ressalvas, e também perceber que os nomes daquelas duas crianças que tiveram a sorte de serem cuidadas por Ela não me causam mais ruído ou desconforto, só espero que percebam que viver ao lado dela por tanto tempo foi mais um privilégio concedido por um só motivo, e que o privilégio, como uma vitória, sempre tem o outro lado.

Tudo isso porque neste pouco tempo de real convivência, Ela sempre foi Ela, sem meias palavras, sem fingimentos e sem precisar negar que é e foi uma mulher muito simples, que só fez viver um dia de cada vez, e que da maneira que lhe foi possível, amou do jeito que lhe foi permitido aprender.

Pode parecer pouco, e é!

Merecemos a plenitude.

Mas para quem nasceu tão perto do fim da escravidão, que veio de longe com quase nada, que começou a vida trabalhando em um pedaço de terra que não era seu, que viveu uma vida com quase nada, que lhe foi negado quase tudo e mesmo assim aprendeu a sorrir e não de desespero, reconheço que a vejo, ali deitada, em seu recolhimento, com as mãos cheias de estrelas. E espero que me sobrem algumas, de herança.