Uma vida, muitas vidas

22 de julho de 2024 0 Por Leandro Marçal

A mulher renega a maternidade compulsória. Outra não sente compaixão por seus pacientes no consultório frequentado pela classe média decadente. O cara com a pele em carne viva depois do divórcio traumático. O jovem em conflito interno pela descoberta da sexualidade fora dos padrões. A travesti soprando pitadas de humor e delicadeza no relato das brutalidades da prostituição.

A leitura nos permite viver várias vidas numa só vida. Não tem nada a ver com reencarnação, porque nesse caso seria (ou é) uma por vez, sem acúmulo de existências num mesmo expediente. O mergulho nessas histórias impressas em livros ou expostas nas telas dos leitores digitais é mais profundo.

Tantas vezes me senti na pele de gente tão diferente de mim. Chego a ter pena de quem ignora a leitura de ficção, perdendo oportunidades de viver o que não se viveu.

Não quero falar aqui de empatia (essa palavra da moda, mas a prática nem tanto). Em alguns casos, aparece a raiva de quem conduz a história como quem dá as mãos e nos joga num cativeiro escuro, sujo e distante. Só encontramos a saída depois da última página, sem tirar aquele ambiente da cabeça por dias, até semanas.

Quando defendo a literatura como lugar das muitas vidas numa mesma vida, preciso me antecipar aos protestos de atores e atrizes, preciso me precaver das pedras atiradas por quem também se encanta com outras encarnações em séries e filmes. Não sejamos literais, por favor. Com a leitura é diferente.

A imersão por páginas e páginas, a voz na cabeça de quem nem existe materialmente fora dali. Nem sempre num tom amigável, pode ser bem desafiador seguir linha a linha. Levando leitores e leitoras a questionar visões de mundo. Mostrando que existem várias formas de viver fora dos livros.

Talvez por isso eu esteja longe de ser acumulador. Minha modesta estante mal conta cem obras. Prefiro ler a ter. Prefiro ver os exemplares circulando, rodando o mundo, especialmente quando sei que não vou reviver aquela vida em tão pouco tempo. Mas não abro mão dos presentes dados por pessoas queridas, nem daqueles com dedicatórias personalíssimas, feitas por gente admirável e não menos querida. Sou um pregador da palavra da literatura.

Vidas de todos os tipos: chatas e tumultuadas, cheias de aventuras ou normalíssimas. Vale a pena dar uma chance. Vale a pena dar muitas chances para a leitura. São muitas vidas querendo ser vividas. Numa existência onde existem a literatura e a ficção e a literatura de ficção, é um desperdício viver somente uma vida.

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Aproveitando a crônica sobre leitura, volto a divulgar meu 4º livro: O último a ser escolhido, antologia de contos onde o futebol é protagonista, cenário, personagem ou mero pretexto para a ficção. Dá essa força aí! Você pode ver todas as informações NESTE LINK, comprar direto com a editora NESTE LINK ou me chamar pelo e-mail marcal_91@hotmail.com.