Setenta e nove e noventa
Me chamaram de louco por pagar setenta e nove e noventa para assistir ao UFC 262. Faço questão de escrever o valor assim, por extenso, deixando clara a mínima distância de dez centavos até os oitenta reais. Nem sou de acompanhar MMA, mas vi muitas lutas em botecos e casas de amigos. Olhando pelo retrovisor, o velho 2012 explica um pouco desses setenta e nove e noventa.
Era março do penúltimo ano da faculdade. Fiz parte da maioria dos homens que entra no jornalismo para trabalhar com esportes, de preferência o futebol. Eu e o mesmo grupo de sala demos um jeito de escolher essa editoria naquele trabalho para a aula de revista. A pauta: uma entrevista com Charles Oliveira, o Charles do Bronx, lutador de MMA nascido e criado na periferia de Guarujá, cidade localizada na periferia da Baixada Santista, região improvisada de São Paulo, estado mal encaixado no Brasil, essa periferia do mundo.
Eu tinha um gravador bom desde os tempos de jornal. Anotamos umas perguntas num rascunho qualquer. Nunca foi fácil se locomover entre Santos e Guarujá. Fomos de carro.
Acho que era o carro do pai do Laércio, com quem volta e meia falo sobre bordões do Faustão, stories bizarros no Instagram e a forte bebedeira no seu casamento. O Vinícius ainda usava óculos e hoje conversamos entre suas viagens diárias de comissário de bordo, embora eu prefira chamá-lo de aeromoço em tom de chacota. Completava a lotação o Rodrigo, morador mais distante do entrevistado, com quem compartilho tuítes exóticos, noticiário político e piadas péssimas. Quase no fim do caminho, encontramos o Douglas, muito amigo meu naquela época, pouco amigo meu nos últimos anos.
E a entrevista poderia não ter acontecido. Depois de uma curva, antes de entrar na rodovia que liga o centro ao mundo real de Guarujá, aquela motoqueira apareceu do nada, pela direita. Quase caiu. Que susto da porra! Talvez fosse um mau presságio se os maus presságios não fossem bobagens das nossas cabeças.
Chegamos enquanto rolava um treino. Falamos com uma moça loira. Sim, éramos os caras da faculdade. Foram mais de duas horas de conversa, bate-papo, prosa boa, como se nos conhecêssemos há anos. Nós, cinco malucos desconhecidos, entrevistando um lutador do UFC com vontade de chegar longe.
Infelizmente, ou não, o texto dessa entrevista se perdeu entre os trabalhos da faculdade. Minha impressão ao encarar o Charles era de estar à frente de um cara engraçado, divertido mesmo. Pele parda, corpo magro, óculos com lentes grossas, ossos zigomáticos avantajados marcando os sorrisos frequentes. Quase impossível não criar empatia por aquele personagem. Muito improvável não torcer pelo entrevistado e acompanhar suas lutas de lá para cá.
Onze anos do Charles no UFC, onde é recordista de finalizações. Já era hora de disputar o cinturão. A luta foi em Houston contra Michael Chandler, um americano com jeitão prepotente, autoconfiante, botando banca. Em bom português: um mala do caralho.
No primeiro round, pensei que os setenta e nove e noventa dariam azar, como a motoqueira surpresa dando um susto. No segundo round, o nocaute parecia a entrevista de duas horas, o gravador funcionado, a conversa mais do que boa, as perguntas respondidas, as risadas compartilhadas, a nota alta na aula de revista. Uma foto com quase todos de calça e camisas polo com listras horizontais, abraçados ao entrevistado de boné preto, camisa branca e bermuda jeans, foi resgatada por nós cinco nas redes sociais.
Nove anos torcendo por aquele nocaute. Essas histórias não têm preço, valem mais do que setenta e nove e noventa. Me chamem de louco, eu não ligo.