Sem harmonia
Segundo a psicóloga, preciso me cobrar menos. Sou falho, sou humano. Minha exigência interna, muito além da razoável, gera crises de ansiedade. Sou imperfeito, sou humano. Não há porque me desesperar pelos erros, pelas mancadas, pelas pedras no meio do caminho. É difícil racionalizar quando o cérebro entra em parafuso, mas eu tento.
Na frente do espelho, penso na última sessão. Quando olho para aquele cara do outro lado do vidro, duvido da sua identidade. Perco algum tempo encarando a calvície adiando o fim da testa, o olho direito com a pálpebra levemente avantajada, o nariz proeminente com mais cravos na base do que na ponta, a barba irregular abaixo do queixo, se unindo à costeleta apenas de um lado.
O mundo ao redor conhece a imperfeição do meu rosto há três décadas, mas só nos últimos tempos pensei na assimetria facial. Celebridades pouco ocupadas, e dedicadas ao Instagram, devem ter sua parcela de culpa. Volta e meia, tomo um susto: o queixo furado em traços caricatos, o rosto liso e cheio de Photoshop, o nariz dividindo o rosto com a precisão de irmãos cortando um bolo ao meio, como o Meridiano de Greenwich definindo Ocidente e Oriente.
É a harmonização facial. Na minha rápida pesquisa, li que o procedimento pode custar de R$ 10 mil a R$ 20 mil. Segundo a definição, é “uma técnica de preenchimento facial não cirúrgica que promove um alinhamento e correção de ângulos da face, levando mais harmonia ao rosto ou realçando características já existentes”.
Num mundo cheio de percalços e cagadas, nada melhor do que a ilusão de um rosto perfeitamente alinhado. A frustração por ter a face ligeiramente torta anda de mãos dadas com o choro por não viver num comercial de margarina. É a pressa pela promoção com menos de um ano na empresa. É a comparação com colegas de escola tão bem sucedidos com a nossa idade. É a certeza do riso ao redor depois da vergonha por um erro. É a tristeza pelas poucas curtidas depois da selfie publicada. Coisas de humanos.
Se os dias são assimétricos e desalinhados, não faz sentido investir tanto dinheiro num rosto sem marcas do tempo, supostamente sem imperfeições e teoricamente sem defeitos.
Quando falam em alinhamento, penso em pneus. Se o assunto é harmonização, lembro dos vinhos. E eu prefiro cerveja. Ao menos, essa obsessão pela fachada com traços bem desenhados permite boas risadas: um mesmo padrão de gente imitando o boneco Ken, ou o príncipe malvado do Shrek, ou vestindo aquela máscara do Pânico. O importante é se sentir bem.
Eu e aquele cara me olhando no espelho não entendemos essa obsessão por um rosto perfeito. Supostamente perfeito. Nem compreendemos a ânsia por eliminar defeitos a qualquer custo. Essa gente também precisa se cobrar menos. Essa gente, e toda gente, também precisa de psicoterapia.