Quando a gata vai embora

12 de agosto de 2024 0 Por Leandro Marçal

Como um caroço que aparece no corpo do dia para a noite, a gatinha cinza brotou na garagem sem avisar, sem bater à porta, sem tocar a campainha, sem pedir autorização. Faz uns sete anos. Pequenininha, olhos cor de marca-texto, capazes de penetrar no inconsciente de quem a encara, para seduzir pedindo comida e água ou antecipar a rosnada quando lhe incomodam.

Adotamos, acolhemos. Sempre aos poucos. Gatos de rua são ariscos, qualquer movimento desperta o medo e a fuga. E como um caroço que some do corpo depois de passarmos pomada, a gatinha cinza sumiu.

Poucos dias depois, a Vizinha Maledicente acusou a Vizinha Brigona, com quem sempre nos demos bem. Meu Pai foi lá ver, disposto a brigar. Quando viu a Neta da Vizinha Brigona abraçada à gatinha, no auge dos cinco ou seis anos, deixou para lá. Estavam felizes, afinal.

O tempo passa, o tempo voa. Por motivos familiares, a Vizinha Brigona avisou da mudança e perguntou à Minha Mãe se ela topava readotar a gatinha cinza, batizada de Laurinha. Claro, claro que a Minha Mãe aceitava.

No nosso núcleo familiar, o substantivo próprio para animais de estimação é levado a sério. Nada de diminutivos, sílabas repetidas ou menções a objetos inanimados. Mas Laurinha já era Laurinha, fazer o quê? Se juntaria a Gabriela (a cachorra idosa e cega) e ao Scar (o gato branco e gordo e preguiçoso). Antes deles, viveram Nino, Nalla, Aquiles, Hector, Calleb.

Nessa volta para casa, Laurinha se apossou do meu quarto-escritório. Insistia em deitar na cama ou no meu colo enquanto escrevo bobagens para pagar as contas. De noite, Laurinha convidava Scar a passear pela vizinhança. Gato tem dessas coisas, mas é preciso atenção. Conversei com a Nova Vizinha, avisei que a dupla passeava por seu telhado e Laurinha entrava na antiga casa, talvez para tirar cochilos, talvez para conferir os cômodos antes frequentados.

Acordei no domingo de Páscoa e Meu Pai perguntou se Laurinha dormiu comigo. Respondi que não. Esperei a Nova Vizinha chegar do almoço em família. Nada de Laurinha por lá. Nem sinal na segunda e na terça-feira.

Fiz um cartaz simples no Word e Meu Pai imprimiu na gráfica da esquina. Compartilhamos em grupos de Facebook e fizemos postagens no Instagram. Colamos em postes e avisamos o pessoal das redondezas. Uns se dispuseram a ficar de olho, outros fizeram pouco caso.

Gatos já nasceram livres. Ouvi histórias de quem se desesperou pelos bichanos sumidos por uma, duas semanas. Um mês! Laurinha não era disso. Devia ter sido roubada, tentávamos nos consolar. Com mais de 40 dias do sumiço, perdemos as esperanças. A casa ficou mais cinza que a pelagem da gatinha.

Depois de 47 dias, a Vizinha Maledicente me irritou por tocar a campainha duas vezes seguidas, sem dar tempo de alguém atender. Qual a necessidade disso? Mas o motivo era nobre: encontraram Laurinha. Magrinha, desidratada, cambaleante, presa numa casa trancada. Numa casa do nosso quarteirão. Tão perto, tão longe. Meus Pais correram para levá-la ao veterinário, Minhas Sobrinhas choraram compulsivamente pelo reencontro. Foram semanas de remédios, observação e cuidados até a completa recuperação.

Laurinha, Laurinha. Enquanto escrevo, ela me olha de lado, encolhida no travesseiro, incomodada com o tec-tec-tec do laptop, arranhando toda descrença em milagres do cotidiano depois de ir embora sem avisar e voltar assim, quase 50 dias depois, despretensiosa, como quem lambe um pote de ração sabor afeto.