Pelé atravessado pelo tempo
Ontem, o planeta Terra completou um mês sem a presença física de Pelé. Foi numa quinta-feira de dezembro, no meio da tarde, que o plantão global nos assustou, que os urgentes seguidos de exclamações pipocaram nos portais, que a notícia de última hora mais cantada e prevista e indesejada piscou nos aplicativos.
Na primeira vez que vi os cabelos de Pelé ficando grisalhos, fiquei assustado. Nas laterais, uns fios brancos. Como assim, o Pelé também envelhece?, eu pensava. E se você cogita me responder levantando a possibilidade do Rei tingir as madeixas por anos e anos, a pergunta continua pertinente: como assim, o Pelé com sinais do tempo?
Mesmo bem antes do tempo, o tempo pôde me deixar calvo. Não imaginava que também fosse capaz de agir sobre Pelé. Os cabelos brancos nas laterais se multiplicando, os olhos ligeiramente arregalados com o passar dos anos. A imagem do Pelé, o Pelé!, entre a cadeira de rodas e o andador depois das intervenções cirúrgicas no quadril.
Como é possível o tempo também atravessar Pelé?, eu me perguntava. Pelé também é mortal?, eu buscava respostas óbvias e impossíveis.
Nas HQs, até os super-heróis exercem o direito à morte. Nascemos preparados para ver os mais velhos indo embora, ficamos indignados se os mais jovens desencarnam antes da hora. Para mim, Pelé morto foge de qualquer compreensão.
Trabalhando de casa, tenho uma televisão disponível a quatro passos da escrivaninha. Ela me faz companhia, ela me atualiza, ela não me deixa entediado. Acompanhei o velório diante da tela, mesmo morando a 8,1 km de lá pelo caminho mais rápido, cerca de 25 minutos de carro, uns 40 minutos de transporte coletivo.
Muita gente deu depoimentos em colunas de opinião, reportagens extensas, textões de redes sociais, até “eubituários” caçando cliques. Tentativas de explicar quem foi Pelé. Vãs, como todas as tentativas de explicar minimamente quem foi Pelé.
Pelé é. Assim, sem complemento. Pelé é. Adjetivo em forma de gente. Inexplicável. Não inventaram, nem inventarão palavra capaz de qualificá-lo em sua totalidade.
Na primeira epístola de João, lá pelo capítulo doze, o apóstolo cristão diz: “Ninguém jamais viu a Deus. Se nos amarmos mutuamente, Deus permanece em nós e o seu amor em nós é perfeito.” E se eu nunca avistei Pelé pessoalmente, vivão e vivendo, me permiti acompanhar sua despedida assim, a distância. Talvez o Deus do futebol permaneça aqui, entre nós, perfeito em nosso amor pelo futebol e pela brasilidade, reinventada depois da Copa do Mundo de 1958.
Pelé, esse cara eterno, também foi atravessado pelo tempo. Do mesmo jeito que eu sou, da mesma forma que seremos. Assim, sem pedir autorização. Para mim, ainda é difícil de acreditar. Como assim, existiu Pelé?