O Homem Que Não Saiu Da Quinta Série
Meu celular tremeu pelas seguidas notificações. Dei uma pausa no trabalho, porque especialistas recomendam sei lá quantos minutos de descanso a cada sei lá quanto tempo de expediente. Desbloqueei a tela, vi um nome e respirei fundo. Eram mensagens dele, O Homem Que Não Saiu Da Quinta Série.
Começou com a saudação protocolar, de mãos dadas com o desejo de um novo ano com felicidades e realizações. Pulou para as perguntas sobre como eu estava, e a família, e o trabalho, e se já tinha voltado do recesso, e outros temas laterais, cercando antes do bote com o único assunto de interesse para a conversa.
Como sou entusiasta das informalidades, vou dispensar seu nome completo e chamá-lo de O Homem. Ele estava incomodado comigo havia um tempo, não conseguia mais disfarçar. Antes, deixava umas alfinetadas em tom de piada no grupo de amigos do colégio, mas saí de lá antes das festas de dezembro.
O Homem não perde a chance de passar a mão na bunda dos amigos ao cumprimentá-los no bar. Nessas horas, repete que tocou em sua propriedade, diz que é dono daquilo. Se está inspirado, fala no exame de próstata gratuito para os camaradas. Em outras situações, segura e aperta a parte da frente, acariciando o que chama de bolinhas de gude. “Ovos mexidos”, O Homem diz antes da gargalhada alta, daquelas chamativas.
Ele se diz descolado. No grupo do pessoal da escola, não cansou de enviar links com podcasts de entrevistas infinitas. Sempre que pode, solta tiradas com escatologia ou genitálias, às vezes escatologia e genitálias. Pode ser num casamento, num almoço de família, não importa.
O Homem não tem papas na língua, nem leva desaforo para casa. Desde sempre, caía na porrada com quem olhava torto, chamava para tirar satisfações quem secava a namorada da vez. Mostrar quem manda e marcar território é uma das suas obsessões, tanto quanto a de rir, mesmo que da cara dos outros.
Ele prefere o humor da antiga. “Hoje em dia, tudo é racismo, tudo é homofobia, tudo é qualquer-coisa-fobia, um mimimi do caralho. Somos todos humanos”, me respondeu há algum tempo. Num grupo só com homens, seu “bom dia a todes” era o cumprimento habitual. “As moças daqui não se incomodam”, repetia, não sem antes fazer questão de ressaltar seu suposto respeito aos não heterossexuais.
Nunca contestei os links absurdos que O Homem enviava na época das eleições. Não valia a pena. O Homem sempre acha que está certo, raramente quer ouvir o diferente. O Homem ainda tem certeza que os minorizados se vitimizam e querem privilégios. Volta e meia, O Homem recorda um suposto passado glorioso, quando o mundo era melhor, quando o mundo não era dividido, quando o país não era dividido.
De uns tempos para cá, O Homem passou a valorizar a família e parou de falar seu ditado favorito. “Cavalo amarrado também come grama, até a da vizinha”, gostava de rir com a mesma malícia dos tempos de Ensino Médio.
Quando O Homem me perguntou, educadamente, os motivos para eu ter saído dos grupos de WhatsApp com os velhos amigos, falei do trabalho. “Tenho três empregos, as redes sociais me consomem, mas tô por aqui, com o mesmo número, do mesmo jeito, na mesma casa, no mesmo bairro”, respondi. Meia verdade.
O mundo muda e nós vamos mudando. Só O Homem não percebe. O Homem Que Não Saiu da Quinta Série precisa se atualizar.