Ninguém decora a agenda
Caía uma chuva torrencial, típica de março. A cidade ficaria parada e a população dos altos prédios aflita, sem saber lidar com as enchentes que de uns anos para cá não se limitam às periferias. Preferi ficar um pouco mais no escritório, adiantar uns trabalhos atrasados e voltar para casa quando a água tivesse ido embora.
Tinha esquecido o celular em cima da cama e não sou um grande adepto a usar redes sociais no horário de expediente. Pode pegar mal com o chefe. Pedi o aparelho emprestado a uma colega de andar. Queria evitar maiores preocupações na família. Passei uns bons segundos parado, sem saber que número discar.
Uma estranha dependência de smartphones nos impede de decorar a agenda telefônica, como em outros tempos. Tenho até medo de falar com pessoas nascidas neste século sobre o que eram as agendas eletrônicas, os bipes, os faxes. Já há maiores de idade que nunca enviaram uma carta na vida. Escrita à mão, com o envelope jogado nas caixas amarelas dos correios.
Os mais velhos, em algum momento da História, tiveram algum caderninho com os números de telefones dos familiares e amigos mais próximos ali anotados. Nem sonhavam em fazer ligações tão rapidamente, com dois ou três toques em uma tela engordurada. Não faz mais sentido decorar a agenda, ainda que eu seja um saudosista fissurado em números e estatísticas. Já fui capaz de citar pelo menos dez prefixos de gente próxima.
Penso nos momentos de emergência que nunca chegam. Pode surgir a necessidade urgente de chamar alguém quando estiver longe de casa, sem acesso a nada. E o que fazer? Não há sinal, não há aparelho celular, como avisar que estamos vivos e não fomos vítimas daquele acidente sério reprisado a todo instante na tela da televisão? Notícias ruins chegam rápido, por ligações ou mensagens de texto.
Devolvi o celular. Amaldiçoei a hora em que optaram por nove dígitos para novas linhas. Recordei, com saudades, os dias em que, para fazer uma ligação a longa distância, não tínhamos que escolher um número de operadora antes do DDD.
Sentei na minha cadeira e me despedi dos colegas dispostos a enfrentar o temporal lá fora. Puxei o telefone do gancho e, sem querer, bati o dedo no botão que liga para o último número discado. Na segunda chamada, minha irmã atendeu. Avisei que demoraria, ela desligou e eu voltei a preencher planilhas.
Muito bom (como sempre), Marçalino!
Muito obrigado, meu caro. E você sabe quantos números da sua agenda?