Não mexa no meu texto

14 de outubro de 2024 0 Por Leandro Marçal

Antes de chegar até você, impresso em páginas cheirosas ou brilhando na tela do Kindle, aquele livro inesquecível passou por uma quantidade generosa de mãos e olhos. Primeiro, a criação; depois, a preparação, para sublinhar linha a linha as incoerências e deslizes na qualidade do texto; as revisões (às vezes três ou mais) apontam erros ortográficos e gramaticais; e a edição coordena tudo, de ponta a ponta.

Falo apenas da parte escrita. As questões visuais (capa, diagramação, ilustrações) ficam para outro dia.

Quando trabalhei em jornal, meus textos passavam pela supervisão da chefia. Nas agências de comunicação por onde passei, pelo menos nas sérias, a revisão tentava impedir a publicação de grandes cagadas. Num curso de escrita criativa, 15 participantes liam as ficções em andamento de cada colega artista, deixando comentários e impressões, sugerindo mudanças de rota aqui e ali. Crônicas como esta exigem de mim a releitura no documento em Word, na ferramenta de publicação, na pré-visualização e no Word outra vez, já com as devidas correções.

Nosso olhar vicia. Logo de cara, raramente percebemos frases mal construídas. O texto precisa descansar, sem pressa. Em casos de projetos de longa duração, multiplique essa necessidade por dez, por cem, por mil. A leitura externa é importante, não existem boas obras que a dispensem.

E aí eu me assusto com colegas da escrita rejeitando revisões, se recusando a debater construções textuais e seus pormenores. Porque os escritos são como um edifício levantado tijolo a tijolo, precisando de cuidado com as estruturas, a parte elétrica, o piso, o telhado, o encanamento e demais clichês materiais. Mas tem quem só ligue para a decoração.

Sinto alergia de colegas de ofício mais preocupados em ser vistos que lidos. Que não lapidam suas palavras organizadas em parágrafos e se envaidecem pela publicação a qualquer custo. Em alguns casos, dar chance a esses textos pouco cuidadosos é uma tarefa tão penosa quanto correr 10 quilômetros sob o sol de domingo perto do meio-dia.

Não vou mentir: também já tive essa pressa. Como bom ansioso, luto diariamente para não cair na dinâmica dos cachorrinhos humanos correndo atrás dos próprios rabos, dos ratinhos de laboratório on-line girando na roda dentro das gaiolas das redes sociais. Não é o algoritmo que te traz até esse sétimo parágrafo, embora possa ajudar a te atrair para ter boa vontade comigo e clicar no link modesto.

Se o mercado da comunicação, onde ganho a vida, é uma floresta de vaidades se atropelando, na área da cultura a mata pode ser ainda mais fechada. Em especial na literatura, por onde transito. Já topei com colegas para quem o simples apontamento de incoerências estruturais soava como ofensa pessoal.

Se queremos leitores qualificados, precisamos recolher as vaidades para baixo do tapete. Parar, pensar, pesquisar, reler, editar, revisar. Pedir que alguém também releia, edite e revise. Sem ressentimentos, sem o apego excessivo a cada palavra escrita. Claro, defender as escolhas feitas para suas obras não faz mal a ninguém, desde que sem o nariz empinado.

Você comete um ato de generosidade quando me lê. É ainda mais gentil quando debate as palavras lidas. E se achar tanta coisa escrita um monte de merda em forma de texto, tudo bem. Direito seu. Não vou guardar rancor. Mas garanto que revisei parágrafo a parágrafo antes de publicar.