Ladeira abaixo

25 de dezembro de 2018 2 Por Leandro Marçal
Caminhos nos levam a subidas e descidas, é preciso ajustar o motor e a embreagem. Foto: Fetropar.

Nunca gostei de festas de formatura. Entendo a necessidade de algumas pessoas de comemorar o encerramento de um ciclo. Como não tinha condições financeiras para torrar muitos dígitos em celebrações de poucas horas, dispensava essas solenidades sem peso na consciência. Minha aversão a despedidas também ajudou a me afastar dessas noites memoráveis para os mais entusiasmados.

Passei a ver nas colações de grau e assemelhados uma chatice semelhante a pessoas batendo à porta de casa em domingos pela manhã, querendo nos convencer a mudar de fé. É porque não tenho filhos, já me disseram.

Lembro uma formatura da minha irmã, ao sair da pré-escola. A mais nova, quando mais nova, era muito ligada em festas desse tipo. E uma colega de sala perdeu pai e irmão na véspera da cerimônia. Um acidente fatal: faltou freio para um caminhão no semáforo da ladeira, ele voltou para trás e não deu chances de defesa para os dois, desprevenidos em um carro de passeio.

Passou o tempo e segui evitando jogar chapéus quadrados para o alto. A satisfação por chegar ao fim de um curso era suficiente. Dispensava fotos caras em um álbum vendido meses depois.

A vida não para e entre subempregos, estágios e uma oportunidade profissional indispensável, comprei um carro. Nos primeiros dias e em todos os outros, sentia pânico nas ladeiras. Tinha medo do veículo descer sozinho depois de engatar a primeira. Não queria causar acidentes.

Desde sempre, fui inábil para o trânsito e continuo sendo. Não foram poucas as vezes em que meu pai me pediu calma. Subidas exigem paciência, essa ansiedade não solucionaria nada, cansou de me orientar.

E foi ela quem me levou pela primeira vez às sessões de terapia. Embora essa pressa mental não solucionasse nada, me fazia dar importância a coisas desimportantes. Eu era alguém me endividando com a formatura. Passei três anos tentando me entender em encontros com uma psicóloga, duas vezes por semana. Até o dia da alta.

Foi como se pegasse o tempo da embreagem. Dali em diante, não teria, necessariamente, um professor me pedindo calma para aquela subida. Eu teria que tirar o pé e seguir na primeira ou segunda marcha. Fui subindo, subindo, chegando ao destino.

O tempo passou. Fiz escolhas boas e ruins. Perdi dinheiro, coisas e pessoas importantes. Precisei vender o carro. Como nunca gostei de despedidas, não houve cerimônia. Tinha outras prioridades. Quando percebi o olhar melancólico dos meus pais, me senti o caminhão sem freio descendo a ladeira, sem chance de parar, só quando batesse em um muro, atropelando tudo que estivesse pelo caminho. Não devo ter pensado neles o tanto que eles pensaram em mim desde a primeira formatura por mim ignorada.

Tive que voltar às sessões de terapia. Dessa vez, porque a queda foi rápida demais. Expectativas e oportunidades escorreram pelas mãos. Perdi o controle da direção e fui descendo sem rumo, não consegui segurar o freio.

Notei que meus melhores amigos tratavam minha depressão como tratei as formaturas. As soluções eram fáceis para interromper a queda: religiosidade, pensamentos positivos, comprar um relacionamento ali no mercado, mudar de assunto e esquecer essa frescura serviriam como ABS ou freio de emergência. Nenhum deles entende muito de mecânica ou psicologia.

Nas últimas semanas, os pneus pararam de cantar e se estabilizaram, ainda que escorreguem daqui e ameacem outra derrocada de lá. Como na época das formaturas, não ligo muito para o fim do ano, a virada na folha do calendário, desejos para um ano-novo melhor ou coisas do tipo. Os dias vêm e vão e não se importam com números.

Pode ter sido o melhor pior ano da minha vida, com a queda na ladeira deixando claro que não fiz a manutenção adequada. Seguirei na estrada, encarando cada uma de suas curvas, com um kit de emergência no porta-malas. Evito pensar em largar o carro no acostamento.

E não sinto saudades de dirigir, confesso. Acelerar, frear, pensar no tempo da embreagem, respeitar pisos molhados e ter tranquilidade na direção da minha vida são o suficiente.