Lá no alto

19 de agosto de 2024 0 Por Leandro Marçal

Sinto incômodo com altura. Beleza, quem eu quero enganar? Tenho medo de altura. Tá bom, tá bom! Ser sincero não faz cair o braço nem o pinto: tenho pavor de altura. Horror. Pânico. Fobia de altura. Fico mudo ou digo coisas desconexas. Me recuso a olhar para baixo perto de sacadas e janelas de grandes prédios.

Como bom ser humano cheio de complexidades, viajo de avião tranquilamente. Não tremo, minha boca não seca, nem sinto dificuldades para dormir. Já tive a oportunidade de andar de helicóptero num outro emprego, mas inventei uma desculpa porque tudo na vida tem limite. Nesses dias de desastres com tantas vítimas, faço questão de lembrar nos papos cotidianos que o transporte aéreo é muito mais seguro que o terrestre, com sua violência tão perigosamente naturalizada.

Quando criança, olhamos para o alto e apontamos para os aviões. O tempo passa e perdemos esse encantamento. A infância de M. acabou há uns bons anos, mas entre descer do ônibus fretado e caminhar até o escritório, na esquina de um aeroporto, conta aviões com a precisão de relógios modernos contando passos.

Semana passada, num papo sobre livros, M. disse que trabalhar na aviação é um sonho não realizado. Adiado, talvez. Antes de bater ponto, tenta adivinhar para onde vai cada aeronave. Em sonos intranquilos, já teve vidas paralelas, viajando a trabalho pelo Brasil e pelo mundo, tranquilizando passageiros e dando instruções sobre como apertar o cinto no meio das turbulências.

— Tu nunca imaginou outra versão tua, trabalhando no avião, olhando pra baixo na decolagem e te encarando sem nem saber, e que tu vive realmente essa outra vida quando dorme, tipo outra dimensão? — perguntei com sinceridade.

— Já cogitei essa hipótese, mas deixei pra lá porque é bem absurda, né?

Meu amigo V. realiza o sonho aéreo de M. todos os dias. Depois de penar em empregos sofridos, se formou comissário de bordo. Sacanamente, é chamado de aeromoço pelos amigos mais próximos (não por mim!). Entre começar esses estudos depois de adulto e fazer das viagens aéreas um protocolo diário, demorou um bom tempo.

Dia após dia, topamos com gente cheia de histórias e sonhos. Basta perguntar e ter interesse para descobrir um novo mundo cheio de complexidades. Pode ser que M. e V. jamais terão a oportunidade de se conhecer e eu seja a única ligação irrelevante entre essas pessoas. Talvez M. e V. pudessem desenvolver uma amizade íntima, dessas para toda a vida, mas as escolhas nos obrigam a adiar sonhos e priorizar outros caminhos.

Depois do papo sobre livros, fiquei pensando se não existe outra versão de mim por aí. Se não estiver trabalhando na imprensa, continuou no emprego público, estável e com salário generoso para a média brasileira, sem se preocupar com os freelances do mês seguinte. Acho que estou viajando.