Hector

22 de setembro de 2019 0 Por Leandro Marçal

Hector foi um grande cão.

Sozinho no quarto, sentei na poltrona, comecei a escrever. Meus pais assistiam a um enfadonho Santos x Atlético-PR na TV da sala, lá embaixo. Minha irmã mais nova usava a mesa da cozinha para fazer trabalhos da faculdade no laptop cheio de adesivos. Era um domingo de sol, mas eu sentia a garganta arranhando depois de dias de chuva e ameaças de gripe. 

Havia colocado uma bermuda preta e a camisa branca com a inscrição Hakuna Matata estampada. Ela já estava velha, me preparava para dormir depois de ter cancelado o almoço com um velho amigo, que trazia novidades interessantes.

Horas antes, minha irmã mais velha conversava e finalizou sua visita semanal cravando: Hector não chegaria ao próximo ano. Quando escrevi este obituário para o cão que morou conosco por quase uma década, não sabia quanto tempo ele iria viver, mas sabia que sua morte não demoraria. Ele não sabia, nunca soube, nunca saberia. Os cães nunca sabem. 

Hector tinha patas grandes, podia machucar com um pisão involuntário. E só machucava, involuntariamente. Era bobo, doce, eterna criança. Tinha um olho de cada cor, respondíamos com frequência que não havia cegueira alguma. Cega, mesmo, ficou Gabriela, a pequena vira-lata que manda na casa. Na casa e em Scar, o gato que a guia na curva da escada, para que ela não trombe nas paredes, nas portas, nos chinelos e pufes esquecidos por nós no meio da sala. 

Demorou algum tempo para a paz entre Gabriela e Scar reinar assim, na mesma cama, nos mesmos cantos.

Em seus primeiros dias longe do velho companheiro – eles se separaram quando minha irmã mais velha casou e o levou para umas boas quadras daqui – Gabriela ficou triste, para baixo, na dela. Não comemorou os dias em que dominaria o reino animal da casa. Na chegada de Scar, as brigas dos primeiros dias deram lugar a um cuidado fraternal. 

Nem ela, nem meus pais viram o declínio do gigante, comparado a um cavalo por quem o conhecia. Hector foi o companheiro de caminhadas de meu pai, que driblava o sedentarismo fazendo força para controlá-lo nas ruas. 

Foram anos de latidos fortes quando chegávamos à esquina de casa. Hector era capaz de sentir nosso cheiro a uma distância considerável. Dava pulos desengonçados antes de ser disciplinado e nos escoltar como um segurança. Em pé, com as patas dianteiras em um muro ou portão, era maior que todo mundo.

Nos primeiros dias de convívio, havia um ceticismo compreensível. Hector era o terceiro cão da raça dogue alemão a conviver com a família. Nalla e Aquiles foram os primeiros – e inesquecíveis. Acho que Hector era tetraneto ou coisa assim deles. 

Aquiles foi o primeiro companheiro de caminhadas do meu pai. A diferença é que ele dava medo, não levava desaforo para casa. Ficava na dele, não era de muita conversa. De tão forte e grande, morreu de repente, infarto fulminante, em um silenciosa noite de mudez coletiva. Meu pai combinou comigo de enterrá-lo na manhã de sábado, mas acordou mais cedo para fazer o serviço sozinho, em um terreno baldio do outro lado da rua. Carregou aquele monstro que amava em um carrinho de mão.

Aquiles era gigante, Aquiles segue gigante.

Nalla era inteligente, diziam as mulheres da casa. Tinha ciúmes de minhas despedidas e avançava em mim. Eu, covarde, fugia. Era engraçado, confesso. Minha mãe pedia que ela acordasse um de nós e ela ia até lá, no estreito quarto de três camas, lambia a cara da pessoa certa, na hora certa, voltava para avisar minha mãe da conclusão da tarefa. Ficava confusa a cada ataque epiléptico. Voltava a si com cara de quem pedia ajuda. Foi um animal único de casa, deve haver teorias metafísicas capazes de explicá-la. Na tarde em que morreu, a veterinárias lhe aplicou uma injeção para interromper de vez as convulsões sem fim. Foram 11 naquele dia. Ou 13, ou 14, ou 15. Não importa. Meu pai a segurou e repetiu, por anos, que foi a pior cena da vida. Ela foi perdendo as forças aos poucos, até suspirar pela última vez. Quando vi pelas grades da tela da sala meu pai tentando imobilizá-la, minha mãe e minhas irmãs choravam na cozinha, de onde não enxergavam nada. 

Nalla tinha um olhar desconfiado e avançava em quem mexesse nos seus travesseiros.

Nalla viveu pouco mais de sete anos, Aquiles cinco. Hector representou bem  a última geração dos cachorros grandes em casa. Passou dos nove anos de vida, faltou pouco para completar uma década. Minha irmã mora a cinco minutos do trabalho e aproveitava o intervalo do almoço para conferir seu estado. Velho e doente, não tinha problemas em dividir atenção com nove gatos. 

Nos últimos meses, Hector não levantava as patas traseiras. Não levantava a cabeça, de vergonha, por ter se sujado de fezes por não haver forças para andar até um cantinho do quintal, se agachar e deixar seus excrementos, não sem antes rodar e rodar, como sempre fez.

A morte de Hector é o fim de uma era para nós. Não há mais condições de criarmos cachorros muito grandes. O tempo, as condições financeiras, a correria, a urbanidade. Muitos impedimentos, ficam as boas lembranças. 

Como a do dia de muito calor em que assisti a um jogo de futebol enquanto ele deitava no chão da sala e me olhava sem entender os gritos, as corridas desengonçadas quando voltávamos de viagem, a cara amassada olhando para o portão depois do barulho da campainha, o medo dos fogos em uma virada de ano. E outras. 

Meu pai disse que dois dias depois de eu escrever esse texto, mesmo sem ter ideia que eu escreveria esse texto, iria à casa da minha irmã para ver Hector. Tinha medo de não encontrá-lo vivo. Não sei se ele foi, não sei quanto tempo Hector viveu depois desse fim de semana. Escrevi com antecedência, não teria condições psicológicas de fazê-lo nos dias seguintes à derradeira notícia. 

Vou pensar muito no olhar colorido. Um olho verde, o outro meio azul, meio cinza, meio estranho, meio de vidro. Meio bobo. Nunca mais os latidos, a mancha cinza, as patas machucando os pés de quem levava um pisão. 

Havia algo de mistério no olhar de Hector. Nunca entendemos, nunca entenderemos.

Gabriela não sentiu seu sofrimento final, companheiro. Se houver um céu canino, corra. Corra muito, como nos dias em que chegávamos de viagem, como nos gramados perto da antiga casa, lembra? Dê bons passeios com Nalla, com Aquiles. Eles têm muito a contar, você tem muito a atualizá-los. Comente com eles, aos latidos, que você herdou a mania de amontoar panos, enrolar-se sobre eles, negar cobertores, se encolher no frio. Mostre o mesmo calombo acima dos olhos. 

Não sei quanto foi o jogo que meu pai viu, nem como meus familiares vão reagir quando receberem o link desse texto, com essas fotos garimpadas. A vida tem dessas, nunca sabemos muita coisa. Nem precisa. Não quis revisar nada, são só palavras amontoadas.

Você foi muito bom para todos nós, Hector. Passe o recado para Nalla, para Aquiles. Vou lembrar do seu latido, que é o mesmo de seus parentes. 

Hector e Gabriela conviveram por quase dez anos.