Enquanto o mundo
Poetas ficam numa prateleira especial da literatura, num espaço privilegiado, de referência. Não são meros escritores. Poeta é palavra de peso. Sua forma feminina, poetisa, não carrega a mesma força, então mudo apenas o artigo: o poeta, a poeta. Dom para poucos e poucas. Ser poeta é ter olhar aguçado. Poetas são alma. Poetas têm poderes metafísicos.
Se hoje há tanta gente escrevendo de tudo, sobre qualquer coisa, em qualquer canto da internet, poetas carregam o mais puro poder da escrita. Enquanto o poema é a estrutura do texto dividido em versos, poesia é a faísca iluminadora na leitura. A poesia é. A poesia acontece: no poema, na crônica, no conto, no romance, na música, no pôr do sol, na criança, num gol do Pelé, no sexo, nas artes. Não acontece na sonolência do marketing de conteúdo e nos textos de SEO. A poesia é superior, está acima dessas bobagens. E mesmo assim, há otimistas capazes de enxergar a faísca poética até em peças publicitárias.
Caminho desde 2017 na literatura e tenho a vantagem invejável de ser amigo de poetas. Um deles, e dos melhores, é o Carlos Roque. Capaz de produzir a faísca poética em poemas e ilustrações, lançou há pouco seu livro Enquanto o mundo, pela Editora Penalux. Em 81 poemas, Roque faz o leitor sentir a alma atravessada por faíscas distribuídas pelas páginas.
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LACUNAS
Em um espaço vazio
cabe uma poesia
em um coração vazio
cabe uma poesia
em uma cabeça cheia
vento
furor e vendaval
mesmo assim
cabe uma poesia
em uma casa deserta
cabe uma poesia
em um ônibus lotado
levando os homens
de volta pra casa
cabe uma poesia
em uma pedra
no chão rachado pela morte
em um rio sem tamanho
cabe uma poesia
nos olhos de todas as meninas
no pedaço desgarrado do sol
no voo de um pássaro sem ninho
e no fisgar de um peixe prateado e brilhante
lutando contra o horizonte
cabe todo o meu lirismo
e a poesia nossa
viva e disforme
de lágrimas sem nome
de todos os dias.
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Ao contrário do senso comum, um bom poema não tem a obrigação de apresentar rimas ou ser “bonitinho”. Na verdade, o bom poema nos atravessa, pela mente, pelo coração, pelo fígado. É cortante. Pode ser indigesto, amargo, um soco na boca do estômago.
Com sua escrita limpa e sem afetação, Roque ilumina e tira a respiração de quem lê. A questão racial nos atravessa em seus poemas como faz no cotidiano, é impossível de ser ignorada e deve ser apontada, ainda que não queiram. E se o tempo também nos atravessa sem pedir permissão, os poemas intitulados com meses do ano e distribuídos de forma decrescente deixam os desavisados atônitos. A faísca da poesia tem o poder de levar ardência aos olhos desprotegidos.
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DISTORÇÃO
Quando sonho
com a minha alma branca
pronta
e à disposição de deus
como dito
de meu pai
em seu próprio enterro
vejo-a
andando em meio
às nuvens brancas
perdida
sem saber
reconhecer
os muitos meios-tons
de sua própria escuridão.
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Poemas não foram escritos para serem “maratonados”, como manda a pressa contemporânea. A poesia tem um tempo próprio. A cada estocada, é preciso respirar fundo antes de continuar, quando não nos vemos obrigados a parar um pouco e respirar o ar do mundo lá fora. Poesia não se explica, se sente. Poesia não cabe numa crônica como esta, sem pretensão de se camuflar como resenha.
Enquanto o mundo tiver poetas como o Carlos Roque – e o André Argolo, e a Thais Campolina, e o Guilherme Aniceto, e a Telma Rolim, e a Maria Bernadete Bernardo –, teremos faíscas para iluminar tempos sombrios.
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Bônus: Outros 5 poemas
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PARA TODOS OS CADERNOS
Já me chamaram de talo
na infantil alcunha
de macaco
de beiçudo
no terrível
e lento
crescer dos meninos
de nome inteiro
na notificação escolar
só sobrenome
no marcar da única alvorada
de negrinho
no dionisíaco porteiro
de anjo
no meu amor eterno
de abobado
no riso lindo
que já se foi
de lindinho
na minha grande predileção
de homem
e outros palavrões
e hoje
apadrinho-me dos cães
lato
bronze e alumínio
e uivo
e negro
para todas as luas de vênus
e me chamo sozinho.
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APENAS ASSIM
Arrasto meu corpo
longo
e curvilíneo
pelo pó
pelo mundo
cansado
exausto de mim
e das estrelas
todas
que brilham
intensamente
mesmo depois do fim.
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ORDEM AO EU
Enquanto o mundo
sem cantos ou arestas definidas
não se dava conta
do constante martelar do tempo
por pregos de vidros e cristais
e abria suas fronteiras
ao sentido que volta
encolhia os seus caminhos
e adotava uma única língua
que poucos entendiam
produzia muita comida
e ao mesmo tempo
fome e desvario
em quem nada tinha
onde todos falavam
e gritavam
por cima do tão esperado silêncio
criando um eco incompreensível
na loucura da repetição
do ão à exaustão
as serras escorriam
em dia de sou ou de chuva
soterrando os vales
onde nada crescia
criando tristes horizontes
e arrastando as casas dos homens
que nada valem
valeria
Valéria é uma outra história
a vela
e a mais-valia
tudo em mim mudava
mas não tinham olhos
motivos
questões
certas e erradas
ninguém notava
que de branco
não importante
ser sexta ou segunda
não mais me vestia
muito menos
me fantasiava
enquanto me restava nu
negro
e sereno
sobre as flores
que somente eu
enxergava
sentia os espinhos
exalava o perfume
e por um estranho motivo
sabia
somente eu merecia.
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ENTIDADE
Ancoro minha alma
na estrela mais nova
e deixo meu corpo passear
vazio
sem peso
sem nenhum medo de pecar
amarro meu corpo
na lua crescente
de nós
e permito
que minha alma viaje
cheia
densa
em visita aos anjos
todos
asas
negros
almas
comungando amores
e na reunião dos fatos
dos atos
admiro a luz
ao me ver
santo
que tem por milagre
único
conhecer
e saborear
insaciavelmente
o gosto
bom
da humanidade.
***
IMPACTO
Qualquer sorriso de criança
me contenta
qualquer sorriso de mulher
me seduz
qualquer sorriso de homem
me alerta
qualquer sorriso de estrela
me acende
para a luta
do negro
negro
contra a luz.
Poemas lindos, estou em atraso nessa leitura. Ansiedade de poder estar em dia, impotência diante do tempo. 24 horas de cada vez.