Enquanto o mundo

25 de abril de 2022 1 Por Leandro Marçal

Poetas ficam numa prateleira especial da literatura, num espaço privilegiado, de referência. Não são meros escritores. Poeta é palavra de peso. Sua forma feminina, poetisa, não carrega a mesma força, então mudo apenas o artigo: o poeta, a poeta. Dom para poucos e poucas. Ser poeta é ter olhar aguçado. Poetas são alma. Poetas têm poderes metafísicos.  

Se hoje há tanta gente escrevendo de tudo, sobre qualquer coisa, em qualquer canto da internet, poetas carregam o mais puro poder da escrita. Enquanto o poema é a estrutura do texto dividido em versos, poesia é a faísca iluminadora na leitura. A poesia é. A poesia acontece: no poema, na crônica, no conto, no romance, na música, no pôr do sol, na criança, num gol do Pelé, no sexo, nas artes. Não acontece na sonolência do marketing de conteúdo e nos textos de SEO. A poesia é superior, está acima dessas bobagens. E mesmo assim, há otimistas capazes de enxergar a faísca poética até em peças publicitárias.

Caminho desde 2017 na literatura e tenho a vantagem invejável de ser amigo de poetas. Um deles, e dos melhores, é o Carlos Roque. Capaz de produzir a faísca poética em poemas e ilustrações, lançou há pouco seu livro Enquanto o mundo, pela Editora Penalux. Em 81 poemas, Roque faz o leitor sentir a alma atravessada por faíscas distribuídas pelas páginas.

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LACUNAS

Em um espaço vazio

cabe uma poesia

em um coração vazio

cabe uma poesia

em uma cabeça cheia

            vento

            furor e vendaval

mesmo assim

cabe uma poesia

em uma casa deserta

cabe uma poesia

em um ônibus lotado

levando os homens

de volta pra casa

cabe uma poesia

em uma pedra

no chão rachado pela morte

em um rio sem tamanho

cabe uma poesia

nos olhos de todas as meninas

no pedaço desgarrado do sol

no voo de um pássaro sem ninho

e no fisgar de um peixe prateado e brilhante

            lutando contra o horizonte

cabe todo o meu lirismo

e a poesia nossa

            viva e disforme

            de lágrimas sem nome

de todos os dias.

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Ao contrário do senso comum, um bom poema não tem a obrigação de apresentar rimas ou ser “bonitinho”. Na verdade, o bom poema nos atravessa, pela mente, pelo coração, pelo fígado. É cortante. Pode ser indigesto, amargo, um soco na boca do estômago.

Com sua escrita limpa e sem afetação, Roque ilumina e tira a respiração de quem lê. A questão racial nos atravessa em seus poemas como faz no cotidiano, é impossível de ser ignorada e deve ser apontada, ainda que não queiram. E se o tempo também nos atravessa sem pedir permissão, os poemas intitulados com meses do ano e distribuídos de forma decrescente deixam os desavisados atônitos. A faísca da poesia tem o poder de levar ardência aos olhos desprotegidos.

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DISTORÇÃO

Quando sonho

com a minha alma branca

            pronta

            e à disposição de deus

            como dito

            de meu pai

            em seu próprio enterro

vejo-a

andando em meio

às nuvens brancas

 perdida

sem saber

reconhecer

os muitos meios-tons

de sua própria escuridão.

***

Poemas não foram escritos para serem “maratonados”, como manda a pressa contemporânea. A poesia tem um tempo próprio. A cada estocada, é preciso respirar fundo antes de continuar, quando não nos vemos obrigados a parar um pouco e respirar o ar do mundo lá fora. Poesia não se explica, se sente. Poesia não cabe numa crônica como esta, sem pretensão de se camuflar como resenha.

Enquanto o mundo tiver poetas como o Carlos Roque – e o André Argolo, e a Thais Campolina, e o Guilherme Aniceto, e a Telma Rolim, e a Maria Bernadete Bernardo –, teremos faíscas para iluminar tempos sombrios.

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Bônus: Outros 5 poemas

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PARA TODOS OS CADERNOS

Já me chamaram de talo

            na infantil alcunha

de macaco

de beiçudo

            no terrível

            e lento

            crescer dos meninos

de nome inteiro

            na notificação escolar

só sobrenome

            no marcar da única alvorada

de negrinho

            no dionisíaco porteiro

de anjo

no meu amor eterno

de abobado

            no riso lindo

            que já se foi

de lindinho

            na minha grande predileção

de homem

e outros palavrões

e hoje

apadrinho-me dos cães

lato

            bronze e alumínio

e uivo

            e negro

para todas as luas de vênus

e me chamo sozinho.

***

APENAS ASSIM

Arrasto meu corpo

            longo

            e curvilíneo

pelo pó

pelo mundo

cansado

exausto de mim

e das estrelas

            todas

que brilham

            intensamente

mesmo depois do fim.

***

ORDEM AO EU

Enquanto o mundo

            sem cantos ou arestas definidas

não se dava conta

do constante martelar do tempo

por pregos de vidros e cristais

e abria suas fronteiras

ao sentido que volta

encolhia os seus caminhos

e adotava uma única língua

que poucos entendiam

produzia muita comida

e ao mesmo tempo

fome e desvario

em quem nada tinha

onde todos falavam

e gritavam

por cima do tão esperado silêncio

criando um eco incompreensível

na loucura da repetição

do ão à exaustão

as serras escorriam

            em dia de sou ou de chuva

soterrando os vales

            onde nada crescia

criando tristes horizontes

e arrastando as casas dos homens

que nada valem

            valeria

                        Valéria é uma outra história

            a vela

e a mais-valia

tudo em mim mudava

mas não tinham olhos

motivos

questões

            certas e erradas

ninguém notava

que de branco

            não importante

            ser sexta ou segunda

não mais me vestia

muito menos

me fantasiava

enquanto me restava nu

            negro

e sereno

sobre as flores

que somente eu

enxergava

sentia os espinhos

exalava o perfume

e por um estranho motivo

            sabia

somente eu merecia.

***

ENTIDADE

Ancoro minha alma

na estrela mais nova

e deixo meu corpo passear

vazio

sem peso

sem nenhum medo de pecar

amarro meu corpo

na lua crescente

            de nós

e permito

que minha alma viaje

cheia

densa

em visita aos anjos

            todos

                        asas

            negros

                        almas

comungando amores

e na reunião dos fatos

dos atos

admiro a luz

ao me ver

santo

que tem por milagre

            único

conhecer

e saborear

            insaciavelmente

o gosto

            bom

da humanidade.

***

IMPACTO

Qualquer sorriso de criança

me contenta

qualquer sorriso de mulher

me seduz

qualquer sorriso de homem

me alerta

qualquer sorriso de estrela

me acende

para a luta

do negro

            negro

contra a luz.