Encaminhando a morte
Meu amigo desde o primeiro emprego, o Magro é um cara muito preocupado com a violência. Um tipo comum, desses sempre alarmados com registros de assaltos, ataques e mortes repetidos à exaustão no jornal do almoço e no “espreme que sai sangue” perto do fim do expediente.
Não que o Magro seja um cara agressivo. Gentil, educadíssimo, de voz serena, “uma moça” nas palavras dos colegas do falecido escritório. Mas as ruas perigosas, o crime, as drogas e a bandidagem são sua pauta diária desde que nos conhecemos, há mais de sei lá quantos anos.
Talvez só esse sei lá quanto tempo de amizade me ligue ao Magro, de quem me distanciei pelos descaminhos da vida, mas não só por isso. Nem adianta avisar que não quero receber flagrantes de tiroteios, de gente pobre baleada, de sangue exposto depois das facadas em brigas de bar.
Me recuso a baixar filmagens de câmeras de segurança mostrando atropelamentos brutais, tenho horror aos supostos alertas expondo possíveis bandidos rondando a vizinhança para justificar futuros justiçamentos, sinto ânsia de vômito ao pensar na gente capaz de profanar cadáveres com o celular e passar o registro criminoso para frente.
Encaminham a morte como quem passa o sal na mesa do almoço. Satisfeitos e felizes, se sentem superiores, são apenas pessoas de bem se masturbando com os mortos distantes. Criminosos, policiais, motoristas, pedestres, desavisados. Não importa. É a troca banal de um corpo frio pela interação nos grupos de WhatsApp por quem se preocupa com a moral e os bons costumes. São fotos e vídeos perturbadores, sinalizados com o “encaminhada com frequência” para deixar evidente a contaminação por essa epidemia incontrolável.
Para o Magro, compartilhar com o mundo a revolta com a morte de inocentes e a satisfação por “mais um CPF cancelado” ajuda a mudar o mundo. Ele também acha que é importante mostrar as vísceras das vítimas de um acidente. “É pra alertar”, sou capaz de ouvir sua voz baixinha. “E se fosse alguém da tua família?”, eu perguntaria nos tempos em que trabalhamos juntos. E seria prontamente respondido, com uma entonação pouco firme: “É diferente, não exagera”.
Se ainda estivéssemos no falecido escritório, eu até gastaria o meu tempo tentando explicar que esse esforço não é um trabalho de formiguinha, porque somos ratinhos de laboratório, girando a roda gigante das bilionárias redes sociais. Mas são outros tempos e prefiro usar melhor o meu tempo.
Não lembro a última vez que vi o Magro. Tanto pessoalmente quanto nos perfis nas redes sociais, porque preferi silenciar suas postagens indignadas. Nem sei como está a família, se viajou, como anda a vida. Ainda guardo boas lembranças desse figura, mas toda semana tenho vontade de bloquear o meu amigo no WhatsApp, ou de encaminhar a nossa conversa para a pasta do arquivo morto.
A perda de intersecção com algumas pessoas é inevitável.