Do outro lado

16 de junho de 2025 0 Por Leandro Marçal

O conto abaixo é um dos 14 publicados no meu livro novo, o Me vê dez médias, cujo lançamento completa um mês amanhã. Tem exemplares chegando em todos os cantos do país e até na França. São 14 ficções ambientadas na Grande São Vicente, narradas por homens sem nome, carregados de violência e brutalidade. Custa R$30 já com frete e dedicatória. É só me chamar no Instagram pra combinar a entrega ou mandar um e-mail para marcal_91@hotmail.com (mesma chave do Pix). Neste post, tem todas as informações. Fica aí a prévia pra você sentir vontade de garantir um exemplar!

Trabalhei com o José numa firma de construção civil. A gente rodava a Baixada Santista de obra em obra. Tinha uns boatos bem esquisitos. Na rádio peão, falavam que ele tava ali só pra ter um trampo fixo, porque tinha vocação mesmo pra mercenário. Matador com doutorado, formado nas ruas, com a tese orientada pelo tráfico, tendo a polícia e a máfia na banca avaliadora. Peão é foda. No começo, eu não botava fé.

Mas o José dava medo. Ninguém nem ousava chamar de Zé. Ninguém tentava uma aproximação, uma intimidade. No meio da peãozada, o José ria das piadas, mas nunca era o motivo das piadas. Tão sinistro que nem tinha nome composto. Era só José, depois vinha um sobrenome que nem faço questão de lembrar.

Chegava e ia embora discretamente. Cumprimentava os caras com educação, deixava a boina azul-escura e a mochila num cantinho. Era apegado nelas, mas tinha certeza que não iam mexer. Um gaiato até quis tirar sarro, falando que parecia mafioso. O silêncio geral foi constrangedor, precisava ter pouco amor à vida pra mexer com o José.

Diziam que ele fez grana levando droga pra dentro de navio e até tinha trocado bala com a polícia federal. Que o José tinha matado mais de vinte. Que era melhor não perguntar o que ele carregava dentro da mochila. Diziam muita coisa.

A firma era boa, todo mundo registrado. Não dava pra reclamar. Teve vezes que deixaram a gente até em pousada, pra não perder tempo com transporte e finalizar logo o serviço. Pra quem mal tinha estudado, tava bom demais. E pra quem era um pouquinho mais esperto, dava segurança ter o José por perto.

*****

Numa quinta-feira, geral tava cansado de bater marreta na obra em Guarujá. Tinha o pessoal que morava pros lados de lá. Quatro dias seguidos, eu só queria chegar em casa e dormir. A chefia dispensou a gente lá pelas três e pouco.

Tava voltando pela catraia, com o José e o Miltão. Um pessoal ficou tomando umas, outros preferiram atravessar pela balsa da Ponta da Praia. A gente vinha conversando, coisa de trabalho, quando o José mexeu os ombros de um jeito estranho. Fechou a cara, ergueu as sobrancelhas.

Senti um arrepio quando vi o José mexendo a boina azul-escura pro lado, tirando os óculos escuros, abrindo o zíper e colocando a mão pra dentro da mochila. E senti medo de falar qualquer coisa quando dois caras anunciaram o assalto. Em cima da catraia, no meio da travessia. Mandaram o condutor continuar, iam fazer a rapa antes de pisarmos em terra firme.

Não queriam fazer mal pra ninguém, disseram. Só queriam os celulares e o que tivesse de valor dentro das bolsas e mochilas. Só. Covardia, no meio da travessia Guarujá-Santos, nem tinha pra onde correr. Só tinha trabalhador e trabalhadora. Oito ou nove pessoas. Deu pra ver uma senhorinha se tremendo toda, coitada.

E o José tirou o que tinha de mais valor da mochila: uma miniescopeta calibre 12 de cano cerrado. Os dois ladrõezinhos, uns amadores, quase se cagaram quando perceberam a arma apontada pra eles.

Com firmeza de profissional, o José mandou colocarem as armas no chão e as chutarem na sua direção. Pediu pro pessoal se encostar atrás dele. Ficaram só os ladrões se cagando pros lados da proa. Pedindo pelo amor de Deus, falando em arrependimento. Obedeci o José e joguei as armas na água antes de passarmos por baixo do túnel. Ele disse pro condutor ter calma e continuar a viagem, já tava tudo sob controle.

Do lado de Santos, todo mundo desceu correndo. Eu e o Miltão também. O José não deixou ninguém embarcar e falou pro condutor da catraia relaxar, iam voltar logo pro Guarujá. Um dos ladrões frustrados chorava, o outro olhava pra baixo. Minhas pernas tremiam quando vi a catraia se afastando. Ouvi pelo menos quatro estampidos secos, mas altos. Fiquei pensando se o condutor da catraia não tinha outro emprego em vista.

*****

Quando o José sumiu do trabalho por uma semana, a história da catraia já tinha mais de seis meses. A chefia perguntava quem tinha notícias dele. Nada de avisos, nada de atender ligações. O cara era bem reservado e isso fazia bastante sentido pra mim. Não tive coragem de comentar com ninguém na firma o que ele guardava na mochila e o Miltão nunca abriu a boca pra falar comigo sobre aquele dia.

Numa quarta-feira, e eu lembro bem que era quarta-feira porque ia num jogo na Vila Belmiro, a esposa dele apareceu. Tava todo mundo na sede, era um dia tranquilo. Bonita, ela. Se fosse a mulher de outro, os caras iam fazer piadinhas bestas, com mensagens cifradas entre a peãozada, gestos ocultos pra sugerir putaria, com risadas deixando certa malícia no ar. Mas ninguém era louco de mexer com a mulher do José.

Ela tava lá, entregando um atestado médico pra chefia, que chamou todo mundo pra conversar. Morena, cabelos curtos, olhos verdes, pernas grossas e postura ereta, tomou a palavra.

— Então, gente… Ele gosta muito desse ambiente de trabalho, acho justo dar notícia. O Zé tá bem, ainda tá internado, vocês devem imaginar que cinco tiros não é pouca coisa, né? Não tá correndo risco, ele é um cara forte. Foi acerto de contas, coisa do passado, mas graças a Deus tá se recuperando. Quem fez isso já pagou. Quando ele voltar, só é bom ficar de olho. O Zé, vocês sabem, podem tentar de novo, e quem tá perto, enfim…

*****

Mas o José não voltou pro trabalho. Semanas depois, a mulher apareceu de novo, assinou uns papéis e levou outros pra casa. Saí de lá já tem uns anos. Nunca mais tive notícias dele. Nem fiz questão de saber, de procurar, de perguntar pros caras, de olhar nas redes.

Só que ontem fui passear com a minha filha na praia. Finzinho de tarde, meio de férias, deixei ela pedalando na minha frente, no calçadão, perto da areia. A regra era não ir muito rápido pra eu fazer caminhada e não perder a menina de vista. Na direção contrária, veio um cara andando com dificuldade, de bengala, óculos escuros e boina azul-escura. Quantas pessoas nessa cidade usam a mesma boina azul-escura e os mesmos óculos escuros do José? E têm a mesma altura, o mesmo peso?

Sei que passou muito tempo, poderia ser qualquer gaiato, mas cumprimentei em voz alta.

Sem mochila nas costas, vestindo sobretudo num calor de trinta e tantos graus, o cara retribuiu sem simpatia. Balançou a cabeça de cima pra baixo, sem falar nada. Pedi pra menina diminuir a velocidade. Olhei pra trás discretamente, tentando descobrir se era o José. Não vi mais ninguém. Continuei andando a poucos passos da minha filha, que ria e gritava chamando papai, papai.