Delírio coletivo
No enterro do meu velho amigo, uma insana esperança me tranquilizava. Aquela imagem não poderia ser real. O pesadelo de quem chorava seu triste fim não passava de um delírio coletivo. Dali a pouco, nos daríamos conta do óbvio entorpecimento. Não era verdade o corpo deitado no caixão aberto, com algodões nas narinas, olhos fechados e a pele pálida demais para quem não dispensava tomar sol aos sábados.
Custei a acreditar. Estávamos presos em uma realidade paralela. A qualquer momento, meu velho amigo apareceria rindo. Brincalhão, teria colocado substâncias estranhas na água. Sairíamos do transe depois de algumas horas, entre a raiva pela brincadeira irresponsável e a tranquilidade da vida pulsando, com programa marcado para o próximo fim de semana. Voltaríamos à vida normal, com o sol torrando sua pele no sábado seguinte.
Os dias passaram e demorei a desistir da ideia do transe inexistente. Nada voltou ao normal, o normal era outro desde o enterro. O tal delírio esdrúxulo era sintoma de desespero e ele passaria. Precisava seguir a vida e não me comportar feito neopentecostal incurável, esperando um sinal dos céus. Demorei, mas caí na real. Meu velho amigo nunca mais bateria à porta do apartamento ou pediria dinheiro emprestado. A realidade é uma só, ainda que possamos distorcê-la.
A ideia de estar em um breve pesadelo é o mais próximo que chego da esperança. Daqui a pouco o despertador toca e tudo volta ao normal. Esse estranho sonhos surge quando estou com os olhos abertos.
Quando me divorciei, a hipótese do delírio denunciava minha ingenuidade tardia. A qualquer momento, sem explicação, eu e minha ex-mulher nos encontraríamos de mãos dadas, em um campo verde como os dos musicais de Hollywood. Sairíamos dançando até flutuar acima das cercas. Traições e brigas ficariam para trás.
Sem câmeras ligadas ou gritos de “corta”, desacreditei um pouco mais de um diretor barbudo tomando conta das cenas cotidianas. Nunca mais nos falamos, ela me bloqueou das redes sociais e só sei de notícias suas quando convenientemente trazidas por quem tenta nos convencer a uma reconciliação.
Diariamente, volto a me iludir. Leio os jornais e me espanto profundamente. Diante de tanto surrealismo, só posso acreditar em um entorpecimento aos milhões. Em algum momento, meu velho amigo quebrará protocolos e voltará de outro plano, rindo das substâncias estranhas que bebemos em casa, no trabalho, nas redes sociais, nos palácios dos governantes.
A realidade massacrante não passa de um delírio coletivo, tento me enganar mentalmente. E essa distorção vai passar, me obrigando a ter fé no futuro, me esforço a sonhar com esperança em dias melhores. Devo estar delirando.