De microfone, na urna

15 de janeiro de 2024 0 Por Leandro Marçal

Vamos supor, e apenas supor, que numa província muito longe daqui, de tempos em tempos jornalistas trocavam microfones e redações pelas urnas, pelos parlamentos, pelas prefeituras, pelos gabinetes. Nessa ficção, colegas de profissão seguiam um exótico plano de carreira, repetindo sem ninguém perguntar seus tantos anos indo às ruas para entrar ao vivo no jornal local, usando a rotina de trabalho para convencer eleitores desavisados de um suposto conhecimento prático dos problemas da cidade.

Nesse mirabolante exercício de imaginação, o salto de tais repórteres até movimentava o mercado de trabalho: novas vagas se abriam para profissionais em começo de carreira; assessores de imprensa ganhavam salários polpudos para melhorar a imagem de quem tentava se vender como alguém “do povo”, superando a antiga alergia à ralé; caciques políticos faziam cálculos cuja explicação foi vetada pelo meu inexistente departamento jurídico.

Ainda dentro do delírio fictício, ex-jornalistas começavam a vida na política levemente inclinados para a direita, embora fizessem questão de ressaltar que não eram nem de um lado nem do outro lado, porque sua causa era contra tudo isso que está aí, porque a tal polarização prejudica o país. Em pouco tempo, essa gente querida babava discursos contra desfavorecidos, condenava sem julgamento quem considerava bandido, dava exemplos de pessoas que não se esforçaram o suficiente para atingir o sucesso. Ex-colegas de trabalho assistiam a seus discursos e se olhavam com cara de “nunca me enganou”.

Para quem não é do ramo, o código de ética da profissão diz que “é dever do jornalista opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Se você não sabia disso, não se preocupe, quem troca o microfone pelo mandato não costuma se preocupar tanto com leitura, muito menos com esse tipo de leitura e de conduta. Mas estou falando de uma situação hipotética, é sempre bom lembrar.

Dentro dessa minha criação literária, ninguém mais se espantava ao ligar a televisão e dar de cara com apresentadores gritando, revoltados, pedindo mais punição e polícia e cadeia e CPFs cancelados. Ninguém mais se assustava com repórteres se perfazendo diante da câmera, querendo aparecer mais que a notícia para garantir popularidade e seguidores. Se na faculdade fazíamos provas bimestrais, a audiência no talo e as redes bem engajadas eram levadas em consideração no vestibular da filiação partidária.

Vamos supor, e apenas supor, que as faculdades de jornalismo precisassem atualizar a grade curricular. Me formei há pouco mais de dez anos e nunca ouvi falar de uma disciplina que ensinasse o passo a passo de como migrar da redação para as urnas. Se essa não for uma mera e descabida suposição, parece uma nova tendência no mercado de trabalho.

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