Cuide dos seus dentes
Só gente insensível e sem coração e com vocação para vilã da novela das nove não exige, eu disse exige, aplicação de anestesia antes que dentistas usem aquela broca maldita com motorzinho irritante para escavar dentes cariados.
Era nisso, e só nisso que eu pensava, sentado na tal cadeira odontológica, com uma luz na minha cara, o olhar no teto para disfarçar o desespero, um excelente profissional me dizendo que o tratamento clínico estava longe de ser dos mais graves e difíceis em seus dez anos de ofício.
Tenho medo de dentistas, como qualquer pessoa normal. Quando pessoas físicas, não me oferecem perigo. Se cruzam meu caminho como pessoa jurídica, penso no tormento do tal motorzinho, destinado a recuperar um dente baleado pelo açúcar, pelo tempo, ou pela genética. Não chega a ser um trauma, é verdade. Mas evito dar opiniões muito sérias antes de cada consulta, uma precaução que aprendi com barbeiros e taxistas.
Para piorar, vou colocar aparelho. Depois dos trinta anos. Eu, hipocondríaco confesso, me deslocando ao consultório dentário semanalmente, extrapolando a consulta anual e preventiva. Sem tomar calmante antes de sair de casa, sem crises de ansiedade na véspera da subida de dois andares pela escada, antes do cumprimento protocolar à recepcionista, antes de me sentar e olhar para a televisão da sala de espera exibindo uma novela repetida.
No meio da caminhada até essa obrigação das terças-feiras, cruzo o centro da cidade e passo por dezenas de consultórios dentários. Nababescos, gigantes, mais parecem franquias de academias, do tipo que instrutores não dão conta de prestar atenção no treino de cada aluno e nem ligam muito para esse detalhe. Na frente de cada franquia odontológica, um desavisado me aborda, oferecendo orçamento grátis, imitando funcionários de redes varejistas tentando vender cartões de crédito. Ofertas para colocar lentes de contato dentais, precinho para o clareamento, jeitinhos de convencer pedestres a gastar um pouco a mais com a estética bucal, e só com a estética.
Penso no dentista detalhando o passo a passo de cada procedimento, e explicando por que preciso usar escovas de dentes com cerdas macias, e alertando sobre o uso do fio dental, e ressaltando a importância de usar enxaguante bucal, e indicando a necessidade da chatíssima limpeza uma vez por ano, e falando dos cuidados tão específicos com o aparelho que vai arrumar os dentes de baixo que estão ficando tortos. Uma vez por semana, no segundo andar do prédio comercial, sem o alarde dos letreiros coloridos do centro, sem panfleteiros vendendo a fórmula mágica da dentição perfeita para os padrões não sei de onde.
Prefiro a discrição. Prefiro ser atendido pelo dentista nada preocupado com o número de seguidores nas redes sociais. E prefiro cuidar dos dentes. É melhor que ser obrigado a ouvir o barulho do motorzinho, a sentir uma pontada antes do efeito anestésico. Mas às vezes, em muitas vezes, é inevitável marcar uma consulta.