Correr*

8 de agosto de 2019 1 Por Leandro Marçal

*Meu livro No caminho do nada foi reimpresso. É um romance no qual o protagonista, Marcelo, narra sua permanente busca por identidade, com total desencaixe no ambiente de trabalho, na família e num relacionamento amoroso conturbado. Com o mundo. Abaixo, a íntegra de um dos capítulos. Para comprar um exemplar e recebê-lo já com a dedicatória, basta me contatar pelo marcal_91@hotmail.com ou pela página do TdG no Facebook. Semana que vem começo a enviá-los.

Há noites em que o trabalho não foi tão massacrante e só buscamos respirar e ver o mundo lá fora.

Coloquei meu surrado short preto com uma faixa laranja, a camisa regata e o tênis de corrida. Busquei um aparelho para ouvir música e saí. Parecia um jogador de futebol dos anos 80.

Nunca tive paciência para atividades físicas. Mas correr servia como fuga. O podre da mente saía pelos poros e havia um pouco mais de chance de viver melhor. Eram os raros momentos em que não me sentia apenas um monte de átomos acumulados e em movimento sobre a Terra.

Saía assim, sem rota, guiado pelo cansaço. O momento de mais solidão e felicidade, quando minhas pernas trocavam movimentos para me levar à frente, desviando de calçadas tortuosas e pedestres desorientados. Era o perdedor e campeão da minha São Silvestre particular, assim, ao mesmo tempo.

Olhei para os lados e observei rapidamente casais voltando do mercado, jovens fumando escondidos no horário em que deveriam estar na escola, peruas velhas passeando com seus cachorros frescos, ciclistas suspeitos que me fizeram mudar a rota com medo de ser assaltado e ganhar mais um trauma irrecuperável, barracas de pastel em meio a calças leg rumo às academias para expor grandes bundas no próximo verão, e tantas outras pessoas cheias de história pra contar em meio a papelões de cestas básicas usadas como camas ao relento dos moradores de ruas asfaltadas.

Me sentia jogando Resident Evil, minha arma era tirar do caminho esses inconvenientes. Cada rua que dobrava era um zumbi que matava. O chefão estava em casa, minha última fase.

Endorfina, obrigado por tudo. Era tão focado em mim que nem os cocôs de cachorros ou carros na contramão me distraíam.

Mudei de calçada quando passava na frente de uma igreja neopentecostal, dessas que nos param para falar da tal Palavra e pouco se importam se sua fé pouco me importa. Mal sabem eles que Deus nada mais é do que um treinador de futebol consagrado e com muitos títulos. Hoje ele só joga os coletes para o alto e se irrita nas entrevistas coletivas. Quem entra em campo se vira para resolver o jogo. Ele até explica sua tática de alguma forma incompreensível ou interpretativa para cada um, mas é nossa ação dentro desse campo imenso que nos leva ou não à vitória. Nunca fiz muita questão de sair do banco de reservas.

Em outros momentos, esse criador do universo não passa de uma espécie de Silvio Santos sádico, rindo perante uma plateia de anjos e demônios à espera de seus aviõezinhos como recompensa, enquanto apanhamos de alguém na rua à espera da produção nos salvar. Cultos são uma balela consumista e não há entidade que me atraia.

Queria que um gênio da informática instalasse um software na minha cabeça para que no dia a dia eu tivesse a mesma determinação e impulso das corridas.

Eram dias difíceis aqueles, de incertezas e temores. Lembrei as vezes em que Milena não podia acompanhar meu ritmo e eu seguia em sua frente, sem olhar para trás em minhas corridas. A voz de dona Lourdes perguntando por que eu insistia em voltar quando saía com pinta de atleta incomodava minhas memórias.

Os dias em que sofria por antecipação só de imaginar que sofreria por antecipação caíam nos paralelepípedos com o suor de meu rosto. Já eram 5 km.

Quando passava dos 10km, me sentia como todo homem que conta vantagens nas histórias sobre sexo. Imaginava ter encontrado a cura para a AIDS ou alguma invenção que mudaria o mundo. Eu era o Clark Kent brasileiro por correr tanto. Fosse assim, Milena era minha kriptonita. Dentro de mim morava um Lex Luthor tentando me derrubar.

Medos estranhos, insistentes. Um receio que nunca existiu foi o da morte de minha mãe. Foi em uma noite após uma corrida como aquela que um médico olhou por cima dos óculos e anunciou o pouco tempo para conviver com sua acidez. Ela apelou a todas as salvações invisíveis em vida no começo de suas crises até descobrir o inevitável: seus dias estavam contados.

Foi um suplício vê-la definhando. Me senti como ela ao ter de suportar um filho indesejado, mas difícil de se livrar por tantas décadas.

Se pudesse, alternaria os bons e maus momentos da vida como nessa playlist, pulando do rap revoltado nos momentos em que percorria uma subida para um reggae mais relaxante em momentos de chegada ou cansaço.

O coração ia pulsando de forma tão acelerada que mal sobrava tempo para pensar de outra forma que não por fragmentos de passado e presente.

As recordações vinham nos formatos de problemas e preocupações, logo esquecidas pelo aviso dos quilômetros percorridos. Eu amo a tecnologia, mais do que nunca senti afeto pela minha mãe.

E os tais problemas ou preocupações com o trabalho iluminavam minha visão e logo desapareciam. Parecia mágica: o truque do atletismo. Não é à toa que os grandes velocistas mal respiram nos 100 metros rasos de uma final olímpica. Não há empecilhos, só a vitória a buscar, correndo atrás do nada.

Cansei e já voltava para o ponto de partida dessa maratona sem planejamento. Correr era tão difícil de largar quanto a maconha. Corrida, maconha e Milena eram as três coisas mais importantes para mim.

Parei com pouco mais de 10 km, me vangloriando de ter vencido mais uma vez.

Foda-se minha mãe e seus demônios me mandando recados lá do inferno. Milena, meu chefe escroto, os amigos azucrinando, boletos, contas, dormir tarde, acordar cedo, metrô lotado, trânsito, crachá, sexo, falta de sexo. Foda-se, foda-se.

As solas do tênis amorteciam todo o impacto do meu corpo sobre o solo e eu era o rei do mundo naquela hora. Até mesmo nos momentos em que desviei de possíveis ladrões de olho em meu estilo de playboy sem a máscara do pessimismo e eterna guerra interior, senti que não dependia de mais nada nem ninguém além de mim.

Parei e respirei um pouco sentado em um banco. Estava a algumas esquinas de casa. Os botecos cheios se insinuavam, eu dava de ombros.

Cheguei ao nem tão doce lar assim, abri a geladeira e entre os enlatados, não havia cerveja. Apenas frutas, verduras e comidas prontas. Eu priorizava comida saudável sem me preocupar nos que sonham apenas em comer.

Preferi acender um baseado e acabei dormindo daquele jeito, com a mesma roupa, no sofá. O cansaço me impediu várias vezes de levantar e tomar banho antes de um sono digno. O couro do sofá acumulava a marca de minhas costas cansadas e as roupas encharcadas de suor.

Era o melhor sono, esse em que não sonhava. Não veria minha mãe outra vez e estava nocauteado pela doce combinação de corrida e maconha.

Só o despertador me avisou na manhã seguinte que o dia seria comum, de trabalho e vida comuns. O relógio gritava em minha direção que não poderia haver mais cinco minutos se quisesse chegar no horário e encarar mais um daqueles dias medíocres de serviço idiota com pessoas não menos tontas.

Precisava tomar um banho urgente. A alma estava lavada da noite anterior, o corpo não.

Com alívio, percebi que não havia mensagens ou ligações pendentes. Eram grupos de trabalho, de falsos amigos, de gente com as quais não nutria nenhuma identificação. A obrigação de estar naquelas festas, eventos, encontros e outras convenções sociais me torturava e gerava desconfiança.

Queria, por tantas vezes, finalizar todas as tarefas necessárias e pendentes na vida na mesma velocidade que a corrida do dia anterior. Eliminaria minhas angústias da mesma forma que o cooper me tira a tensão.

Saí do banho e no metrô me arrisquei a mandar uma mensagem de bom dia para Milena com uma vã esperança de que ela pudesse rever sua decisão de pararmos onde estávamos e, quem sabe, eu não estragasse tudo outra vez. Deixei no silencioso para não sofrer com as vibrações infinitas desses aparelhos viciantes.

Os mesmos rostos, as mesmas pessoas, o mesmo itinerário, as mesmas conversas nos mesmos dias. A vida é um looping eterno e a gente cria algum sentido por puro capricho e mimo humanos.

Fui o primeiro a chegar ao escritório e comecei a adiantar trabalhos indesejados. As faxineiras dando um toque final nas mesas burguesas; os primeiros funcionários chegando sem dar bom dia aos subalternos; meu chefe escroto atrasado como de costume.

Eu quis correr novamente.