Cléber, o pé amputado, a igreja
Anos atrás, uma lanchonete com salgados bons e baratos abria dia e noite onde hoje está uma igreja, na esquina de casa, nessa rua movimentada que cruza a cidade. O tempo muda as pessoas, os bairros e os comércios. Já faz algum tempo, um grande toldo retangular, com letras douradas e fundo preto, anuncia os horários dos cultos neopentecostais.
Debaixo do toldo, dorme um homem. Noite sim, outra também. Na faixa dos quarenta e poucos, tem barba grande e olhar baixo. Um dia, pediu comida aqui em casa. O portão é gradeado, a garagem não é coberta, fica mais fácil chamar um dos quatro moradores e seus animais de estimação, privilegiados por dormir em camas altas, com cobertas tão quentes como a água que sai do chuveiro, alimentado pela rede elétrica que lhes possibilita acesso a avanços tecnológicos.
Esse “um dia” se multiplicou em vários dias. De vez em quando, o pedido no café da manhã. Outras vezes, no almoço. Raramente, mais de uma vez por dia. Por vergonha, suspeitamos.
Entre um papo e outro, conhecemos um pouco mais aquele homem: seu nome é Cléber; ele diz ter um lugar para morar a 50 quilômetros daqui, mas não tem como chegar lá; ele agradece por ter recebido doações de roupas e cobertas, mas lamenta ter sido roubado seguidas vezes; ele fala de uma lesão grave no pé; nós entendemos que ele não toca a campainha mais de uma vez por dia porque mal consegue andar os poucos metros da esquina até o portão.
Uma boa alma deu seu jeito para levá-lo ao hospital da cidade, o único e capenga hospital da cidade. Um médico deu o diagnóstico: só uma cirurgia para aquele pé doente. Será amputado. Cléber precisava apenas esperar o contato do especialista, confirmando a data da operação. Mas ele não tem telefone, não tem contato, não tem casa.
Na sexta-feira passada, Cléber pediu por comida outra vez. Tomou a liberdade, pediu mais. E ligamos para o SAMU. E ele foi internado. E ele terá o pé amputado. Deram um número de telefone e seu nome completo, mas não encontramos parentes ou conhecidos.
Cléber dormia amparado pelo toldo da igreja, mas só quando a igreja estava de portas fechadas. Se abertas, o homem precisava dar lugar aos carros estacionados e às pessoas distribuindo panfletos. Quando tiver alta, imaginamos que ele baterá à nossa porta outra vez. E planejamos ajudá-lo a percorrer os 50 quilômetros daqui até o abrigo que lhe espera.
A fome. Na esquina de casa. O frio e o desalento. Na esquina de casa. A indiferença religiosa. Na esquina de casa. O pedido de socorro. Na esquina de casa. O Brasil.
Em cada miséria de um ser, um pouco da nossa como humanidade. Excelente final!
As igrejas ocupam os lugares afetivas de nossa infância, sem pagar ISS ou IPTU.