Chuvas deverão*
*Escrito há alguns anos, o conto abaixo foi publicado na antologia Nos Canais.
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Por mim, a cidade tava dividida faz tempo. Do VLT pra cá, Santos. Do VLT pra lá, outra cidade, outro nome, quem sabe doada pras vizinhas. Tipo caridade. Uma extensão de São Vicente, um puxadinho pra Cubatão. Pra gente preservar o que tem de bom em Santos. Praias, bairros iluminados, gente diferenciada, ar cosmopolita. O restante pra fora daqui. Do VLT pra lá, a gente só ficava com a Vila Belmiro, que é um símbolo, e o Porto, que dá dinheiro, mas fede e é escuro. Pronto. O resto não é Santos, nunca foi. Seria bom pra todo mundo. Pra mim, inclusive: não estaria aqui, com essa bota ridícula, cobrindo outra chuva de verão com enchente na entrada da cidade.
Divisão esquisita pra quem chega de São Paulo ou do interior. Tudo embaixo d’água, a escolha entre as favelas da Zona Noroeste pro lado direito ou a linha reta até a Santos de verdade. Anda um pouco pra frente, mais favela do lado direito, um cemitério, morros, um vazio do lado esquerdo. E água pra tudo que é lado.
São lugares esquisitos, cheios dos mesmos problemas e todo mundo sabe que é um saco mostrar esse povo perdendo tudo em casa, os deslizamentos. Ninguém quer saber de tristeza, mas o povo da Redação acha importante. É nessas horas que dá aquele desânimo, mas sou obrigado a sorrir pra quem me chama pelo nome na rua. A fama tem dessas. Vez ou outra, umas senhorinhas me perguntam se eu não sou aquele repórter da televisão, o Jotabê. Eu corrijo, fingindo não me irritar: Jotapê Evans. Sou, sim, o repórter da TV local. Finjo me interessar nos papos da aposentadoria minguada, o preço da feira cada vez mais alto, tá bom, senhora, vou ver com a chefia, é notícia importante, sim. Foi o meu primeiro editor-chefe que me sugeriu trocar o João Pedro pelo Jotapê escrito por extenso. Disse que eu precisava de um nome artístico marcante pra ficar fácil de pegar, pra colar na boca do povo. E ele acertou. Pelo menos uma.
É bom ser reconhecido. Também sou parado nas baladas, botecos, festas. Falando nisso, mais tarde tem uma das boas. Organizada por uma turma de faculdade. Piscina, evento fechado. Bebida e maconha à vontade, mas tenho que tomar cuidado, hoje em dia qualquer um tira foto com o celular escondido e joga minha imagem na lama. Mulherada pira quando conto as histórias das reportagens, um falso glamour que encanta quem não conhece a profissão a fundo e se admira por perceber que eu existo, mesmo. Ficam me olhando, pensam que me conhecem de algum lugar, perguntam se sou mesmo aquele cara da TV ou só muito parecido, mesmo. Ninguém imagina meu tédio de ficar aqui, em pé, com um cinegrafista rabugento, trocando mensagens num grupo privado do pessoal da Redação. Falam mal de mim o tempo todo por lá, me chamam de coxinha, mimado, suspeitam que tenho costas quentes pra seguir no emprego mesmo odiado por todos, falam mal dos meus textos, dizem que não sei escrever bem, teve a acusação de plágio. Não que seja tudo mentira, mas é foda conviver com gente marmiteira. Não vejo a hora de flagrar um papo assim e levar pro chefe. Ou eles ou eu, vou dizer. Dou audiência, sou mais importante que produtorzinho de merda reclamando pra plantonista frustrado. Também tenho pavor de jornalista velho e falido, pregando união da classe pra melhorar de condições. Pensam na Redação como sindicato ou partido político.
Ficaram com pé atrás comigo na primeira vez que fui pra rua e quando demitiram o antigo editor-chefe. Ficou ruim pra ele e pode ficar ruim pra esse de agora também. Se me chutar daqui, vou ter muito a falar.
Cinco minutos, gritaram do switcher. O cinegrafista se prepara, sugere colocar o trânsito como plano de fundo e ajeita a câmera enquanto termina de fumar um cigarro. Voz seca, sem emoção. Veio aqui por obrigação, ele não me suporta, mas não quebra o pau porque tem filhos, paga pensão. Tudo parado, a água não baixa. Depois da entrada ao vivo, preciso gravar um boletim pra edição da manhã e outro pro jornal do almoço. Querem que eu entreviste uns motoristas também. Quem liga pro que essa gente pensa, meu Deus do céu? Mesmas reclamações, descaso, a prefeitura isso, os políticos aquilo. Ninguém mandou nascer pobre, morar em espelunca longe da cidade, nesses puxadinhos de Santos que só atrasam o lado bom daqui. Pena que não posso dizer isso, não é politicamente correto.
Choveu, tem pauta pra fechar uma edição inteira. Agora, um pouco mais que antes, porque tá indo água pra Ponta da Praia e pro Gonzaga. Aí aparece aquela preocupação de jornalista velho com lado social de não sei o quê, ninguém se importa. Claro, não vou negar, tragédia rende. Mas não tô aqui pra isso, não. Quero só a visibilidade pra voar mais alto em breve. Ser apresentador é a meta. Por aqui, já teve gente com programa de viagens, chatíssimo pra quem assistia. Já fiz reportagem com papagaio cantando hino de futebol e vendi bem a pauta pra terminar a edição da noite, foi o vídeo mais visto daquela semana no site. O povo me parava na rua pra comentar. Foi quase um mês nisso. Fama, visibilidade, tem coisa melhor? Sei que uns preferem uma boquinha em gabinete de vereador, mas eu quero mesmo é ser parado na rua, de preferência por gente bonita. Puta que pariu, é foda.
Nas festinhas como essa de hoje à noite, elas tão pouco se lixando se eu gozar rápido demais ou brochar de tanta cachaça na cabeça. Só de falar que foi pra cama com o Jotapê Evans, aquele da TV, com a barba rente e bem feita, pele branquinha, cabelo baixinho, perfume importado, que se formou não tem nem cinco anos na faculdade do dono da outra TV local, a selfie nas redes sociais, já dá pra se colocarem como populares na região, nos grupinhos de baladeiros. É o que a mulherada quer, e falam uma pra outra, e chego aos lugares, e me mandam número de WhatsApp, e o câmera fica puto comigo porque tô mais preocupado com meu pau que com o fechamento, e guardo o celular pra me arrumar e ele pedir que eu me posicione mais pra esquerda. Se foda.
Lá na Redação, tem uns lunáticos preocupados com notícias de fora do Brasil. Chegam de ônibus com livro na mão, até. Reclamam, mas é melhor cobrir festa de amigos da chefia, tomando champanhe em centro de convenções, que tomar água na cabeça e usar essa merda aqui. A bota não é minha, fica na emissora pro azarado que for cobrir enchente. Tem umas capas feias também, com o logotipo da televisão. Esquenta pra cacete, machuca o tornozelo e eu comprei um tênis de marca cara, dá raiva ficar aqui a essa hora. A chuva já passou, mas não escoou a água onde essa gente coitada mora, o caminho de volta pra casa vai ser deprimente demais pruma sexta-feira.
Nesses cinco minutos entre o começo do jornal e minha entrada ao vivo, fico ouvindo a apresentadora falando de como as outras cidades vivem o caos dos temporais de começo de ano. É sempre assim. Chega a tarde e escurece o céu. Prefiro já ter pauta pra não cair na barca furada de enchente. Se colocassem as mesmas imagens de todos os anos, com a mesma gente desdentada, comendo o plural das palavras, chorando porque perdeu tudo ou sofreu pra ir pro trabalho, ninguém nem ia perceber. Nas reuniões, falam em prestação de serviços, denúncia, esses papos sobre o papel do jornalismo regional, um monte de baboseiras que me dão sono, muito sono.
Me posiciono diante da câmera, pro caso de dar alguma merda e eu entrar ao vivo antes do combinado. Olho pra trás, vejo ônibus e caminhões formando uma onda, levando a água podre aos que se arriscam nas calçadas. Busco alguém com um barco, gente se arriscando na água, carros boiando, acidentes, caminhadas lentas com medo de cair em algum buraco. São imagens que rendem. TV é isso, um fato curioso por uns segundos pra chocar quem assiste, com a narração extensa e repetitiva do âncora no estúdio com ar-condicionado no talo. E com o possível elogio, talvez ao vivo, por eu estar em cima da notícia, num cinismo de quem conta com o óbvio acaso pra ganhar tempo e preencher 45 minutos de notícias locais. Ajeito o ponto na orelha, o cinegrafista me olha com má vontade, gira a câmera pra lá e pra cá, acho que ele vai mostrar o caos enquanto eu falo. Não gosto muito, quanto mais o meu rosto for mostrado, melhor pra mim, mas não vou arrumar confusão agora, tá muito em cima.
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Há dois meses, entrei ao vivo pra todo o estado, num link pro telejornal da capital. Claro, o pessoal da Redação me olhou torto. Inveja. Vazaram pra gente um vídeo de um vereador pedindo dinheiro a um empresário enrolado numa investigação da Polícia Federal. Propina das bravas, precisei escrever na minha colinha do que se tratava pra explicar o caso. Teve gente chocada, mas eu não tava nem aí se roubavam ou o que faziam. A projeção era a única coisa importante. Não podia errar e ainda precisava expressar seriedade no rosto. Sem risadinhas. Péssimo. É horrível ter que cobrir esses assuntos de política, prefiro bolar frases engraçadinhas, ser o repórter divertido, o povo lembra mais isso. No esporte fica mais fácil. Na política, é foda ter que decorar nomes: secretário disso, vereador há não sei quantos mandatos, assessor daquilo. Um erro e vem processo pra TV, reunião e bronca. Me mandar embora eles não têm coragem. Paciência, pelo menos usaram aqueles dois minutos da entrada ao vivo e mais uns VTs no jornal da tarde. O país todo me viu.
Foram ligações das tias velhas, publicações em redes sociais, um monte de recalcado me seguindo e parabenizando pelo trabalho, como se eu fosse o cara mais bem-sucedido que conhecem. Precisei fingir gratidão, menti com um falso carinho por todos que me deram força pela linda trajetória na TV. Pura média, mas não posso dar mole nem passar por antipático ou mascarado. Depois daquele dia, foram mais duas ou três vezes pra todo o estado, pra falar de festas locais e programação de shows no auge da temporada. Uma veterana se incomodou e foi lá falar com a chefia. De lá pra cá, tão revezando nessas entradas pros telejornais de mais repercussão da matriz. Sei não, desconfio de boicote. Num lugar cheio de invejosos, preciso ficar desconfiado o tempo todo. Depois que apareci pra capital, meus poucos motivos pra muito papo com o pessoal daqui acabaram. Marmiteiros frustrados, plantonistas que nunca cresceram na carreira, editores loucos pra sair da TV local, repórteres meia-boca loucos pra conseguir uma molezinha numa assessoria de imprensa. O tempo todo reclamando do salário. Que é baixo, mesmo, não dá pra negar.
O pessoal de origem pobre tem mais dedicação às pautas de lugares muito distantes. Enchentes, crimes bárbaros ou hospitais lotados são o que eles gostam de fazer. Também acreditam nesses papos de sindicato pra melhorar salário. Tô fora. Antes de morar no apartamento que meu pai alugava, nunca passei perrengue. Os velhos pagavam a faculdade e os rolês. Agora, se dá problema pra fechar as contas, é só avisar que vem um depósito pra dar uma forcinha. Não fico largado. Quem não se orgulharia do filho aparecendo na TV local, indo pra lá e pra cá, falando com gente favelada em dias de tragédias como a do temporal de hoje? A vó e a mãe se compadecem e me ajudam se eu precisar, então não preciso me desgastar por causa de salário baixo. Minha irmã posta o tempo todo fotos do irmão famoso. Não tenho culpa de ter nascido bem, não me envolvo com reclamações de quem escolheu a profissão porque quis. Comigo, não!
Se fosse pra reivindicar, eu teria que ganhar muito mais que a maioria deles. Não me deram mais chances quando eu tava crescendo, alguém mexeu os pauzinhos pra eu me ferrar com o pessoal da capital, não é possível. Ficar no meio da água não é pra qualquer um. Me colocam nesses lugares escuros e esburacados pra me prejudicar. Depois que mudou o editor-chefe, tenho saído um pouco mais, dá repercussão, mas é complicado ficar em lugar assim, perigoso. Faz parte.
A apresentadora anuncia pra depois do intervalo mais informações das chuvas fortes que pegaram muitos trabalhadores de surpresa. Clichê, linguagem tosca. Padrão. A vinheta toca, o oferecimento do hospital que nunca é fiscalizado pela reportagem é o primeiro. A voz rouca do locutor fala dos principais acontecimentos no capítulo de hoje da novela. O switcher avisa que minha entrada ao vivo será a primeira depois do intervalo.
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Senti um pouco de medo na minha primeira pauta sobre enchentes depois de um temporal. Não sabia como me comportar quando o antigo editor-chefe me entregou aquelas botas e me mandou pisar na água e apontar pra câmera até onde ela chegava. Era uma imagem forte, ia render mais. Me senti desafiado. Desafiado não, afrontado. Ele queria me jogar na fogueira, apostava na minha desistência. Achava que eu não tinha coragem de meter o pé naquela podridão, de conferir a enchente nas favelas.
Era uma das minhas primeiras entradas ao vivo e dava pra perceber o olhar torto do pessoal. Diziam que eu furei fila entre os produtores que viraram repórteres. Eu tava na Redação há menos tempo que os outros e mesmo assim fui meio que promovido. Fingi que não tinha ouvido nada disso, não era problema meu.
As outras entradas ao vivo tinham sido pouquinha coisa, besteira. Naquela enchente não: ia rolar entrevista com um secretário e eu era obrigado a cobrá-lo publicamente. Por que os mesmos lugares sofrem ano a ano, por que não tinham obras pra diminuir aquela catástrofe, onde foi parar o investimento pra acabar com os alagamentos? Esse monte de encheção de saco que anotei num bloquinho pra não esquecer. O cinegrafista não entendeu o motivo de tanto rabiscar, parecia tão óbvio. Não imaginávamos que íamos nos odiar tão facilmente depois de pouco tempo. Não falamos nada além do básico profissional nas idas entre a Redação e as pautas. Ele filma, dirige a viatura, toma conta dos cabos, contata a central pra saber do link e trocar umas ideias com o pessoal da Engenharia. Eu apareço, falo bem, sou conhecido. Nunca vi ninguém parar um cinegrafista na rua pedindo autógrafo ou selfie. Eu já passei número de WhatsApp, já peguei mulher, já ganhei presente de velhinha na rua.
Pergunta da promessa feita no temporal do ano passado, Jota. Contesta esse cara agora, porra, ele tá mentindo, ele tá mentindo. Só mais 30 segundos, vamos te cortar. Corta ele, não deixa esse filho da puta falar sem parar, caralho. Vai voltar pro estúdio, puta que pariu, ele deitou na gente, porra. O editor-chefe gritou demais comigo no ponto. Deu vontade de jogar aquela merda fora. A reunião na Redação foi tensa. O cinegrafista me olhou torto quando o secretário se despediu me chamando de Joãozinho, apelido de infância, e perguntou se meu pai tava melhor da coluna.
Dali pra frente, fui perdendo o medo. Me acostumei com as piadinhas de corredor. Ouvi um montão do editor-chefe, mas se ele fosse tão bom quanto dizia, ainda tava por aqui. Ao vivo é bom, dá pra improvisar, ninguém vai me editar. Posso ser mais brincalhão, fazer uma piada, dar risadas com os entrevistados. O público gosta e se isso virar minha marca aumentam as chances de ter um programa no futuro. Imagina? Pode ser de entrevistas, até, só não muito sérias e chatas.
A vida inteira eu via de cima os carros parados no trânsito em dias de temporal. Olhava pela janela a maré subindo, as gotas grossas caindo no chão. A empregada dormia no colchão do quarto nesses dias, não tinha como voltar pra casa. Fazia pipoca de micro-ondas e minha mãe enchia o saco pra eu e minha irmã deixarmos que ela descansasse. Não tem problema, patroa, dizia. A empregada, que nem lembro o nome, ficava com a gente, tentando adivinhar que horas a rua ficaria vazia.
Quando cheguei cansado no primeiro dia cobrindo uma enchente, ela me deu um beijo na testa e disse que me viu na TV. Falou do orgulho dos meus pais, disse que eu teria uma carreira brilhante. Eles já tavam dormindo, iam acordar cedo no dia seguinte, mas pediram pra avisar que viram tudo. Ela perguntou o que eu queria comer, precisava me alimentar bem pra me recuperar depois de um trabalho tão exaustivo. Não entendia como eu era capaz de não tremer na frente da câmera. Pedi a carne de panela, sua especialidade, e ela foi lá esquentar tudo enquanto eu me trocava. Desde que saí do apartamento pra morar sozinho, a encontrei poucas vezes, geralmente nos almoços de domingo. A empregada ainda dorme por lá nos dias de muita chuva.
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No dia em que a coordenadora do curso de jornalismo me chamou à sala, sabia que tinha dado merda. A colega de sala me acusou de plágio. Dizia, brava, que eu tinha copiado fragmentos grandes de um texto seu, publicado no jornalzinho do primeiro ano. Eu era estagiário no jornal impresso da universidade, já estávamos no último semestre. Havia um projeto experimental, que nos ajudava a manter contatos, cultivar fontes, sermos vistos pelos veículos de comunicação locais. Para cada semestre, um jornal diferente, alimentado por toda a classe. Com reuniões de pauta, programação pra fechamento e editores diferentes a cada edição. Nada era mais abominável do que o plágio, me disse apontando o dedo na cara. Fiquei quieto, ouvindo com atenção.
Eu conciliava um estágio pela manhã num site local, outro à tarde na TV da universidade e à noite ia pro curso. O tal texto descrevia o dia a dia de uma tribo indígena vivendo em Praia Grande. A coordenadora do curso me questionou sobre os fortes indícios de uma fragmentação de alguns trechos em parágrafos fora de ordem, com as mesmas aspas da reportagem de anos antes.
Neguei tudo, obviamente. Ainda assim, fiquei espantado com tanto chororô por uma matéria de jornaleco universitário. Ninguém perdia tempo lendo aquela merda além dos próprios alunos da comunicação e dos professores mais atentos. Eles fingiam que nos observavam, davam falsas esperanças de indicações pra estágios, mas todo mundo soube desde o início que as boas relações nos levam mais longe que as notas altas. Não que elas fossem irrelevantes, claro. Perdi uma vaga de estágio na área de comunicação da prefeitura porque elas eram o critério de desempate. Nem adiantou meu pai conversar com um secretário que frequentava as festas de aniversário da família.
Já na faculdade, talvez o vínculo dele com a reitoria possa ter feito a diferença praquele rolo não ir adiante. Claro que a colega de sala nunca mais falou comigo. Não duvido que ela tenha feito minha caveira pro povo da Redação, ela conhece um pessoal daqui, é frequentadora de sindicato. Pra ser sincero, nem me importo. Meu sucesso tá só começando.
Foram bons tempos na faculdade, com exceção das aulas de sábado. Cheguei de ressaca algumas vezes, ninguém merece acordar às oito da manhã pra pensar em pauta, pra ir atrás de matéria. No terceiro ano consegui eliminar essa DP com algum esforço. Cultura, história do jornalismo, teoria da comunicação. As piores matérias pra mim, confesso. Não fossem as ajudas do meu amigo nerd nas provas, perigava ficar por lá até hoje. E sem necessidade, queria saber do diploma e nada mais.
Tá, o aprendizado nas aulas de TV era importante pra mim. Os professores percebiam minha vontade grande de apresentar nosso telejornal universitário. Por muitas vezes, empunhei o microfone nos corredores da faculdade. Empostava a voz e metia a cara no vídeo. Tirava fotos pra postar em redes sociais e ser conhecido desde cedo como um jornalista de futuro brilhante. Nada comparado a esses dias de repórter, mesmo que de enchentes e tragédias. Mas foram bons tempos.
Me deram a ideia de bater à porta da faculdade, agora como ex-aluno. Posso falar com a coordenadora, se ela não tiver morrido, pra dar uma palestra aos iniciantes. Contar um pouco sobre como é a vida real de um jornalista, sem contar minha vida real de inveja na Redação. Se rolar, vou separar as melhores fotos, montar uma apresentação de slides no Power Point e atuar, como faço em frente à TV. Na hora das perguntas, vou priorizar responder alguma gostosa, pra no fim chamá-la de canto e elogiar o interesse pelo curso, fingindo ser um especialista que tem muito a ensinar. Na cama, de preferência. Isso sempre dá certo.
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Esse comercial do plano de saúde é a deixa pra volta do intervalo. Acabaram de me avisar. Não vejo a hora de sair daqui, tá começando a esfriar, a perna já cansou, ainda tenho OFF pra gravar na porra da Redação, preciso ser rápido pra dar tempo de chegar no apê, tomar um banho, me trocar. Preciso comer alguém hoje, vai tá cheio de mina nova da faculdade. E eu aqui, com essa bota pegando no tornozelo, todo encharcado, pisei em água podre num lugar de gente feia. Puta que pariu. Hoje vou tomar todas, tô livre do plantão de fim de semana.
Deixa eu repassar. Voltou. A Defesa Civil emitiu alerta depois das fortes chuvas nos morros, a previsão é de mais temporal pra esse fim de semana, as imagens são chocantes, muita gente perdeu tudo. Tá faltando alguma coisa, tá faltando alguma coisa. Puta que pariu. Não posso esquecer nada pra chamar o VT, não quero dar brecha pra comida de rabo.
Ergo a sobrancelha, balanço a cabeça como quem concorda com a apresentadora que fala das chuvas de hoje em tom de denúncia contra os céus. Enquanto ela vomita números de prejuízos do temporal de hoje, apareço em uma das telas que decoram o estúdio moderno, com mais três repórteres posicionados em outras cidades da região. Vacilo quando ouço a buzina de um carro passando atrás de mim, volto a mirar a câmera, é agora. Falo pausadamente pra dar a impressão de estar preocupado com a desgraça diária desse bando de pobres voltando pra casa. Sou capaz de enganar quem me conhece apenas das telas, consigo emitir sinais de empatia num momento trágico pra tanta gente. Minha rua não enche, nunca encheu, me questiono sobre os motivos de tá aqui, se tudo isso vale a pena, mas penso na fama aumentando e tô num caminho sem volta.
Pois é, Márcia, muito boa noite a você e a todos os telespectadores. O temporal de hoje à tarde assustou os moradores da região e a situação aqui na entrada da Cidade ficou caótica. Mais cedo, eu e o cinegrafista Irineu Pereira registramos imagens chocantes na Zona Noroeste. Árvores caindo, relatos de quem perdeu tudo outra vez e o sentimento de indignação contra a falta de atitudes do poder público para evitar esse tipo de prejuízo. Infelizmente, não é nenhuma surpresa pra quem já se acostumou a andar com a água pela cintura em dias assim, como a gente vai ver no VT.
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Se quiser ler outros contos meus na internet, já publiquei dois: O cão está aqui mesmo, no TdG. Futuros é outro conto, que saiu no blog O Mistral.