Antes de sonhar, eu sonho
Minha última refeição do dia não pode ser muito tarde. Se como demais depois das oito, tenho pesadelos esquisitíssimos. Quando falo que não janto, me olham como se eu fosse estranho. Talvez até seja, não posso negar. Num dia comum, tomo o café da tarde-quase-noite lá pelas seis e muito, no máximo às sete e pouco. Nas noites de pizza, demoro mais a dormir e demoro menos a acordar para beber água.
Semana passada, meu pai contou seu sonho esquisitíssimo. Ele não tinha jantado, nem comido pizza depois das oito. Pessoas mortas e causadoras de mágoas na família lhe atormentavam. Mesmo dormindo, sabia que esses parentes não estão mais entre nós há um bom tempo. Sem me fingir de especialista, comentei que os sonhos falavam muito do meu pai e quase nada das pessoas mortas. Talvez seja hora de deixar certas histórias para lá. Passou, nada pode ser mudado, mas dá para se livrar desse peso. Quem sabe até melhorar a qualidade do sono, deixando-o mais profundo, menos leve, mais restaurador. Não sou bom conselheiro para nada, mas nem acho que fui mal nessa.
Na pandemia, quase toda noite eu tinha sonhos lúcidos. O nome é bonito e fácil de entender. Neles, sabemos que estamos sonhando. Em casos de muita lucidez, dá para controlar os rumos do sonho. Tem quem ache lindo. Eu me apavoro. Sonhos lúcidos me perturbam, me lembram o incômodo traço controlador na minha personalidade.
Nos meus tempos mais ansiosos, tinha dificuldades para dormir. Deitava e pensava que dali a pouco entraria em transe. Tentava racionalizar o sono e os sonhos. Apagar, me desligar, deixar levar. Quando percebia, as horas já tinham corrido rápido demais. O dia seguinte era de ressaca. Chegava a falar da insônia com um sorrisinho cínico, em tom autodepreciativo, para não admitir a derrota noturna.
Minha relação com os sonhos melhorou. Mais qualidade do sono, mais saúde mental, mais saúde física. Os papos com meu amigo mineiro, psicólogo com trabalho focado em sonhos e imaginação, fizeram muita diferença. Quando parei de me apegar à racionalidade a qualquer custo, passei a dormir melhor. Gosto de pensar, mas aprendi a curtir o sentir.
Antes de dormir, penso na vida. Lembro histórias. Falo de pessoas. E sonho antes de sonhar. Sem ilusões. Tentando calibrar expectativas, buscando não alimentar preocupações. Me desligo sem dar chance à racionalização sobre os olhos fechados. E durmo melhor que em outros tempos. Sonhar não custa nada, é o que dizem.