A arte do migué

26 de agosto de 2024 0 Por Leandro Marçal

Buscar a origem de gírias e expressões populares talvez seja a menos estranha das minhas manias estranhas. Quem começou a falar isso?, de onde veio essa espirituosa combinação de palavras?, me pergunto e faço uma pesquisa rápida pelas gramáticas e dicionários. Nem sempre encontro a resposta, faz parte do jogo.

Um exemplo: o popular “dar um migué” vem de “dar uma de migué”, que por sua vez nasceu de “dar uma de Miguel”. Miguelagem, migueloso, miguelento e miguelar são da mesma família. Talvez primos não muito distantes, talvez irmãos meio que bastardos. Sempre indicando dissimulação, uma falsidade de leve, um fingimento maroto. Se fazer de bobo, se fingir de besta.

Para entender as origens do migué, precisamos olhar para a História. Com H maiúsculo, mesmo. Quem é bom de migué costuma ser bom em contar histórias, mas esse não é o meu ponto. Entre os anos de 1832 e 1834, uma guerra civil tomou conta de Portugal. Tudo porque Pedro I e seu irmão Miguel brigavam pelo trono. Dar uma de Miguel, que passou a perna no mano não muito querido ao roubar-lhe a coroa lusitana.

No fim da treta, o primeiro imperador do Brasil levou a melhor, mas morreu de tuberculose pouco tempo depois. O outro foi exilado e viveu suas últimas décadas na Alemanha. Mas o migué nunca morre. E quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda. Se nada disso for verdade, então a origem do migué é um migué em si. Nada mais justo. Seria a prova dessa prática tão comum como um ato artístico em sua essência.

Não quero incentivar mentiras, golpes, rasteiras e outras sacanagens. O migué não é isso. Dar um migué tem um lado quase romântico, um gêmeo siamês do jeitinho brasileiro e do sambarilove.

Porque no mundo real, na vida lá fora, a sobrevivência exige um mínimo de malícia. Você pode interpretar todas as teorias de Exatas e de Humanas, pode resolver todas as fórmulas matemáticas e químicas e físicas, pode ser especialista em técnicas mirabolantes que solucionam todos os problemas da humanidade. Sem dominar a arte do migué, o caminho é mais esburacado. Entendendo dessa técnica, pode até ser que uns atalhos encurtem a viagem.

Mas nunca é demais lembrar a necessidade de manter os pés no chão. Quem se acha rei ou rainha do migué costuma ter surpresas desagradáveis. Ganhar a fama do vício nesse drible cotidiano faz mal para a credibilidade. Se te acham o migué em pessoa, pouco acreditam na sua palavra.

Dar migué é arte, mas ter cautela faz parte. Ou deveria fazer. Se você acha esse papo meio estranho, não se preocupe. Eu tenho manias estranhas, admito.