1%

Mesmo sem olhar para a tela o tempo todo, dá para ter noção de quando a bateria vai acabar. No decorrer do dia, a barra indicadora de energia vai mudando de cor, até um vermelho chamativo avisar a proximidade do fim.

Desbloqueamos o celular, olhamos para a tela sem notificações, deslizamos o dedo como se o mundo estivesse à disposição. Em poucos segundos, voltamos a bloquear o aparelho. Não há nada de útil por ali. Ignoramos mensagens repetitivas e papos furados. Pode ser que olhemos para uma janela e hesitemos entre mandar mensagens ou ignorar eternamente. Até sentir a perna tremendo e um apito no bolso.

Pouco depois, repetimos o mesmo procedimento. Quando a tela nos indica 1%, ficamos preocupados. Uma emergência pode causar complicações, mas nas emergências não temos 100% de sanidade.

O 1% é cruel. Não podemos contar com mais um tempinho. Em questão de segundos, tudo escurece e a angústia por novidades toma conta de todas as células do corpo. Nada muda, mas é importante ter esse nada às mãos.

Só nos preocupamos com as recargas quando nos falta uma tomada. Podemos pedir ajuda ao colega de escritório que comprou o mesmo modelo naquela promoção. A mocinha com cara de simpática na rodoviária deve nos salvar, não custa a tentativa.

Quando chego do trabalho, não sei o percentual de energia exibido na tela. Parece não haver lógica, tenho 1% de forças ao desligar o despertador e vou aos 100% depois de ouvir elogios. Varia muito.

Desconfio da matemática e acredito em percentuais negativos. Tento digerir os dias de 1%. Sem recargas antes do tempo para não viciar, espero a tela apagar. Há recursos tecnológicos para recuperar energias. Nem precisa muito, uns vinte e poucos já me ajudam a ter uma vida normal.

Deixamos de reparar nas cores dos olhos de quem nos rodeia, preocupados com a bateria. Mera desculpa para evitar desconhecidos indesejáveis. A linha vertical bem fina, o número magro, a indicação de sobrevida, o prazo de validade até não se sabe quando.

Se a tela escurece antes de indicar a bateria fraca, não faltam especialistas em tecnologias para apontar os erros. Estava viciado e não houve os devidos cuidados, a primeira recarga deveria ter passado de 12 horas, produtos piratas podem causar explosões e queimaduras sérias. Os originais são caros demais, temos outras prioridades em casa, nunca paramos para pensar nisso.

O 1% é um privilégio. Um dia, sem aviso, sem pensar nas mensagens não respondidas, a tela se apaga de vez.