Futebol, uma ficção
Aos prantos, um jovem negro, com apenas 17 anos e oito meses de idade, conquista a primeira Copa do Mundo para aquele país na periferia do mundo; oito anos antes, ele se comoveu com as lágrimas paternas e prometeu ao velho que ganharia um mundial de seleções, num dia de quase 200 mil vozes caladas no maior estádio do planeta.
Mais de 40 anos depois, um atacante recuperado de lesões graves marca dois gols em outra final de Copa do Mundo, vencendo o goleiro alemão eleito melhor jogador do primeiro mundial do novo século, primeiro mundial de seleções disputado na Ásia; quatro anos antes, esse mesmo atacante deixou o mundo chocado em outra final de Copa do Mundo por convulsionar horas antes da decisão; até e-mails conspiratórios correram a internet para explicar o inexplicável.
Tantas e tantas vezes, sem que fosse possível contar nos dedos das mãos e dos pés, imagens comoventes nos mostraram torcedores e torcedoras se amontoando e chorando, chorando de alegria, alegria por ver o clube de coração saindo da fila, quebrando jejuns de cinco, dez, vinte e tantos anos sem conquistar um mísero título, sem erguer uma só taça; piadas perderam a validade e foi possível deixar um recado para os rivais de que nem só de vitórias se vive o futebol, nem só de conquistas se forma uma vida.
Se um desses três exemplos genéricos-porém-bem-conhecidos formasse a sinopse de um livro de ficção, possivelmente o leitor mais treinado torceria a cara e jogaria a publicação para o fim da fila. Clichê, muito clichê. Eu poderia ser acusado de contaminar minha obra com autoajuda barata e didatismo sonolento. As tramas soariam inverossímeis e seus enredos mereceriam espaço, se muito, em filmes de baixo orçamento repetidos à exaustão na Sessão da Tarde.
Mas a leitora bem treinada sabe que não há ficção nos primeiros parágrafos deste ensaio. São histórias conhecidas, repetidas, contadas de geração para geração. Você certamente há de lembrar um fato futebolístico beirando o realismo mágico, mas que aconteceu nas quatro linhas desse mundo esquisito, com muito mais gente de testemunha. Até entendo haver certa dificuldade para reproduzir nas telinhas e nas telonas lances de jogo de forma convincente – ainda que o mundo da bola não se resuma a chutá-la de um gol para o outro.
Nesses pouco mais de cinco anos na trincheira da literatura, ainda me estranha o baixo volume de ficção literária com o futebol como pano de fundo, personagem ou cenário. Podemos mais, muito mais.
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É possível que o leitor mais atento tenha chegado até aqui revoltado, me achando um louco. “Como assim? Cada vez mais lançam livros sobre futebol”, dirá aos berros contra a tela do computador ou do celular. Possivelmente, a leitora sensata pensará em citar o clássico Febre de Bola como livro obrigatório, jogando na minha cara o quão desinformado e atrasado eu sou. Não nego, nem confirmo a acusação. Mas a excelente obra escrita por Nick Hornby está no campo da não ficção, das histórias reais, que podem até ser floreadas aqui e ali. Não é esse o meu ponto.
No, Brasil temos farta e indiscutível tradição nas crônicas de futebol. Armando Nogueira, Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade são exemplos de quem pavimentou uma estrada que tanta gente caminha e até corre ainda hoje, mesmo com alguns motoristas experientes e passageiros mal-educados jogando lixo pela janela. Embora tenham perdido espaço para os textos pré-cozidos da internet, tão voltados aos resultados do momento, dá para encontrar bons e boas cronistas da bola por aí, nas redes, nos blogs, nos sites especializados e nos jornais tradicionais.
Editoras como a Grande Área realizam um trabalho primordial de retratar o futebol de forma técnica, talvez até científica. São livros que explicam detalhes para quem deseja entender minúcias, contando histórias de quem fez história pelos gramados, trazendo explicações pormenorizadas das táticas, tendências, avanços e recuos. É um trabalho importantíssimo de documentação escrita do futebol. De onde viemos e para onde vamos? Se hoje somos menos amadores, temos uma crescente bibliografia para explicar caminhos percorridos e atalhos a serem evitados. E ela deve ser incentivada, consumida, compartilhada. Não dá para esquecer importantes livros-reportagens e autobiografias. A visão e os bastidores de quem estava lá dentro, repetindo movimentos antes de chutar uma bola na frente de todo mundo.
Se você me pede a recomendação de um bom livro de futebol, eu rebato com outra pergunta: mas que tipo de livro, sobre qual aspecto, com que objetivo? E passamos um bom tempo comentando sobre a tonelada de linhas escritas e dedicadas a entender e destrinchar o esporte mais popular do planeta.
Mas e a ficção? Por que parece que escrevemos menos ficção com futebol do que o futebol pode nos proporcionar?
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Convivo bem com dois grupos distintos: fanáticos por literatura e fanáticos por futebol. Em ocasiões especiais, os dois times se misturam. Mas em condições normais de temperatura e pressão, me parece que o futeboleiro quase que abomina a leitura, enquanto o literato não raro detesta com todas as forças o futebol. Como se fossem duas tribos tão distantes que não haveria a menor hipótese de conviverem pacificamente. Erros crassos, equívocos abissais de quem não tem ideia do mundo de possibilidades e experiências perdidas por preconceitos bobos, de ambas as partes.
Meus primeiros passos na literatura foram dados com crônicas, a maioria delas publicadas no Ludopédio. No começo, bem no começo, ainda tinha algum pudor em criar ficção como cronista. Num curso de escrita literária, aprendi que a vida dessa espécie peculiar não é assim tão empolgante quanto pode parecer a cada texto semanal, quinzenal, mensal, sei lá. Quando a coluna virou livro, pelo menos 70% dos textos partiam de uma situação real para o mundo ficcional. E uma gota de ficção transforma uma praia de não ficção num oceano de ficção. Não escrevo crônicas sobre/de/com futebol regularmente há alguns anos. Precisei respirar outros ares. Mas naquele período, percebi uma parte dos meus leitores enxergando o futebol como muito mais do que 22 desavisados ou desavisadas correndo estupidamente atrás de uma bola. Também recebi mensagens de quem achava a leitura uma chatice e o futebol a coisa mais importante do mundo, repercutindo textos que não necessariamente versavam sobre os resultados da rodada, mas traziam no esporte uma metáfora do cotidiano.
O ofício do escritor não se limita a representar a realidade. Não pode ser resumido a contar histórias. É preciso criar histórias, inventar, especular novas formas de enxergar outras realidades. Num período de abundância de telas e autoritarismo se multiplicando como Gremlins depois da meia-noite, a crise de imaginação afasta um bocado de gente da leitura de ficção. Como “efeito Tostines”, talvez pouca gente, ou menos gente do que o esperado, se dedica a criar ficções envolvendo e atravessando o futebol.
Precisamos seduzir essas gentes para nossa trincheira tão acuada.
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No mar da ficção, navegamos em trajetos cansativos, mas com uma chegada recompensadora. Passamos por navios enormes e botes salva-vidas de pouca vida útil. Uns tubarões tentam nos intimidar, cruzamos com ondas de tamanhos variados, precisamos respirar e dar braçadas no nosso ritmo, sem competir uns com os outros. Ficamos intimidados antes de aprender a nadar, mas depois nos propomos a mergulhos profundos e não queremos deixar de admirar a beleza do fundo do mar, ainda que poluído com muito lixo jogado nas praias.
Se você gosta dos livros do Eduardo Galeano, então somos dois. Existe ali um lirismo que enxerga o futebol para além do competitivo e capitalista esporte de alto rendimento. É ficção? Às vezes sim, às vezes não. Galeano fez sua parte.
Entre os ficcionistas da bola contemporâneos, destaco o trabalho do Guilherme Trucco. Recentemente, lançou o Vocês Vão Ter Que Me Engolir, pela Dolores. A obra tem nos seus 20 capítulos o puro suco da brasilidade, mostrando que esse esporte que nos atravessa desde antes dos tempos da escola não vive só do pay per view. Temperado com modernismo, a trama mostra a queda do avião que levaria a seleção brasileira à Copa de 2022 num deserto. Mas não é qualquer seleção brasileira: seus jogadores têm apelidos, dispensando nomes compostos. Há uma mulher misturada aos marmanjos do elenco. No livro, o mundo da bola não se resume ao eixo RJ-SP. E enquanto alguns membros do elenco vão se transformando misteriosamente em galinhas d’angola, nos conectamos aos antepassados e enxergamos a possibilidade de um esporte – e um mundo – menos exato como as planilhas, mais humano como os humanos. Faz um interessante dueto com Saída Bangu, obra que compartilha uma estrutura caleidoscópia, com vozes diversas falando a cada capítulo. Nesse livro, Trucco já mostrava sua característica de usar frases curtas e curtíssimas. O futebol tão científico é ridicularizado, tanto quanto certa visão utilitarista do mundo. E como no seu livro mais recente, o futebol búlgaro ganha o papel de símbolo da precisão absoluta, pintando outra vez como adversário da seleção brasileira na final da Copa de 2022. Nas duas obras, Trucco nos leva a pensar no sentido de cobrarmos tanta precisão no futebol de um mundo impreciso.
Imaginar outros caminhos no futebol e com o futebol é fundamental para um ficcionista da bola. Mas também é dever de casa ter na mente um projeto literário claro, trabalhando suspensão de descrença, verossimilhança e outros aspectos fundamentais à literatura. Trucco sabe bem como manejar essas regras, que só podem ser quebradas depois que as conhecemos e dominamos. Não posso falar o mesmo de Flávio Prado, renomado jornalista esportivo e autor do sofrível O Juramento. No mar da ficção, essa praia merece a bandeira vermelha de imprópria para banho. Num misto de literatura com bad trip, o autor especula uma trama em que é possível corrigir supostas injustiças do futebol. Quando alguém nasce e morre no mesmo dia, existe a possibilidade de voltar no tempo e modificar resultados históricos. Tais regras são apresentadas a conta-gotas, de acordo com a boa vontade do narrador onisciente, colado ao profissional conhecido do público, narrando a história em primeira pessoa. Conhecedor dos meandros do Além sem ter morrido, apresenta uma sucessão de falhas estruturais de fazer corar uma estátua. Em alguns momentos, Prado exagera na exposição de seu vasto conhecimento do futebol. Mas falta sabedoria quanto a aspectos caros às boas obras literárias. É comum ver jornalistas acreditarem que para ser bom escritor de ficção, basta vomitar no papel umas ideias bem encadeadas, desperdiçando boas premissas em execuções espantosas. Talvez eu precisasse de outro ensaio como este para citar a preguiça que dão os diálogos expositivos. Obras ruins também são necessárias e fazem parte do processo. Se precisamos de ficção com futebol, é bom ter na cabeça que nem todas serão obras-primas ou relevantes.
Já O Drible nasceu como um clássico. É o melhor livro ficcional com futebol que já li. Não venceu o Prêmio Oceanos em 2014 à toa – naquela época, ainda se chamava Prêmio Portugal Telecom de Literatura. Sérgio Rodrigues conta a história de Murilo Filho e Neto. Pai e filho, tão distantes, tão distanciados. O pai é um cronista futebolístico octogenário e aposentado, que viveu os tempos áureos da imprensa esportiva e do futebol das nossas terras. Neto sempre foi desprezado pelo pai famoso, levando uma vidinha mais ou menos. Ouve algumas histórias do pai, numa talvez tentativa de se fazer as pazes, enquanto somos apresentados a Peralvo, jogador dos anos 1960 que teria sido maior que Pelé. Um bruxo. Claro que o livro é mais do que isso. Ditadura militar, frestas nas histórias contadas, tragédias familiares. Tem de tudo ali. Também é um livro de futebol, mas não é um livro só de futebol.
Como O Drible da Vaca, de Mario Prata. Aqui, conta-se as origens do esporte. Claro, de um jeito completamente ficcional e bem-humorado, marca registrada de um dos escritores mais engraçados da literatura brasileira. Duvida? Se eu disser que Dr. John Watson, o famoso assistente de Sherlock Holmes, começa a narrativa sobre as origens do futebol na Inglaterra do século 19, espero que você acredite e se interesse em ler essa maluquice.
Não faz muito tempo, Xico Sá lançou A Falta, livro de proposta engenhosa. Seu narrador protagonista, Yuri Cantagalo, é um goleiro à beira da aposentadoria. Na última partida da carreira, narra minuto a minuto sua solidão embaixo das traves, a angústia pelo abandono da mulher, a ausência do pai, os tempos áureos no futebol espanhol, os perrengues e abusos na época das categorias de base, o mundo à parte dos jogadores. Tudo isso durante um jogo no Estádio Zerão, cuja linha do meio de campo acompanha a linha do Equador, com cada lado em um hemisfério do globo. Muita coisa, ao mesmo tempo, em quase 90 capítulos curtos. Em alguns momentos, o excesso de referências cansa e soa irreal. Nada que tire a qualidade de um valoroso esforço criativo para juntar futebol e ficção.
E não dá para falar da ficção com futebol sem citar aquele que, para muitos, é o maior de todos nesse lado do campo: Sérgio Sant’Anna. O escritor falecido ainda nas primeiras voltas da pandemia tem contos brilhantes sobre o esporte. Destaco Páginas Sem Glória, do livro Páginas Sem Glória; meu preferido é Na Boca do Túnel, do livro O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro; um de seus últimos textos publicados em vida saiu na Folha de São Paulo: o conto Das Memórias de uma Trave de Futebol em 1955. Histórias curtas e potentes. Algumas nos atingem como um soco na boca do estômago, dado pelas mão sem luvas da boa literatura.
Certamente, existem mais obras em que o futebol é protagonista, coadjuvante, cenário e personagem. Destaquei algumas lidas recentemente, outras que me marcaram nos últimos anos. Existe um futebol a ser explorado pela ficção e pelos ficcionistas. Muito além da bola, dos gols e dos clichês como esta frase.
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Lá no começo da pandemia, eu aprendi a usar os períodos ociosos no trabalho para rabiscar uns rascunhos. Sigo com esse hábito até hoje e foi naquele período que esbocei uns 10 ou 12 contos com o futebol de cenário, personagem ou pano de fundo. Se tudo der certo, devo publicar como livro lá pelo ano que vem. Espero ser uma contribuição honesta e de alguma qualidade à ficcionalização do mundo da bola.
Porque só a ficção e a imaginação nos permitem criar novas realidades. A ficção e a literatura têm aquele poder de ampliar percepções, aumentar o entendimento sobre questões aparentemente banais, ver o mundo de outra forma. Se você nunca tinha parado para pensar no que leva governos autoritários a perseguirem a cultura e a arte de seu próprio país, tem aí um bom caminho. E se você nunca parou para pensar nessa necessidade de imaginarmos novas histórias e novas formas de encarar o futebol por meio da literatura, recomendo ler também as obras ficcionais da bola.
Precisamos de novas formas de encarar o mundo. E o mundo do futebol. Um futebol com estádios e/ou arenas – seja lá o que isso queira dizer – acessível àqueles que fizeram esse esporte ser o que é hoje: o povo. Um futebol livre de discriminações religiosas, raciais, sexuais e de outras naturezas no campo e no seu entorno. Um futebol menos nocivo e agressivo. Um futebol mais lúdico e menos planilheiro. Um futebol em que os protagonistas não se sintam alheios ao mundo aqui fora. Um futebol mais nosso do que deles. Um futebol diferente do que aquele visto todos os dias, mesmo que faça sentido apenas durante uma centena de páginas, mas que leve leitores a refletirem sobre as estranhezas da sociedade em que vivemos.
Se o futebol e a ficção jogarem juntos mais vezes, ganharemos muito mais pontos.
Sensacional. O futebol pode ser o cenário para as nossas glórias e tragédias. Imagina se no dia em que o bolsonaro veio jogar na trave, ele tivesse batido a cabeça e morrido em campo. Que Brasil teríamos no dia seguinte, hoje, manhã. A Vila Belmiro, templo eterno do futebol se transformaria no pior lugar para os tiranos ou local de peregrinação para os fascistas? Já tenho um pedaço dessa ficção.