Vicentino da gema
Nasci, cresci e até hoje vivo em São Vicente. Já trabalhei em empresas de São Paulo, Santos, Cubatão, e até de Minas Gerais. Mas sempre voltava para cá. De pequeno, nunca fui muito da rua e talvez o home office me ajude a continuar por aqui. Eu não tinha aquela identificação com o meu lugar, já me senti forasteiro na própria terra, mas percebi que as três casas onde morei ficam no mesmo bairro. Que é grande demais: hoje, fico na divisa entre o centro e a periferia.
Essa cidade, malvista por tanta gente, é dividida entre as áreas insular e continental. Estou na primeira, mais perto da praia, com melhores índices socioeconômicos, com mais atenção do poder público.
Somos a prima pobre de Santos, tratada com desdém por quem vê graça nas mazelas sociais. Aqui, enchente vira piada. Lá, gera indignação no jornal do almoço. Curioso notar que as cidades-irmãs ocupam a Ilha de São Vicente, não existe Ilha de Santos. Parte considerável dos nossos vizinhos conhece pouco de astronomia e não sabe que a Terra gira em torno do sol, não de Santos.
Além das enchentes, também contam muitas supostas piadas com a violência daqui. E com a política, onde inimigos viram amigos de uma hora para outra. Amigos raramente viram inimigos, porque ninguém sabe o dia de amanhã, todo mundo pode precisar de um favorzinho ali, um empreguinho acolá. Nisso, talvez minha terra não seja diferente de outras terras, tanto as próximas quanto as distantes.
Em tom de brincadeira, um amigo paulistano me disse que tenho os pés na lama, porque São Vicente foi construída sobre o mangue. E que sou enraizado demais. Pode ser. Gostamos de falar mal da nossa terra, mas não suportamos gente de fora se sentindo nesse direito. Não sinto orgulho de ser vicentino, nem vergonha. Sou daqui. As coisas são como são. É um fato, impossível de mudar. Para o bem e para o mal. Tem quem prefira chamar vicentino de calunga, nome que remete a tradições africanas. Tem quem prefira chamar São Vicente de gohayó, como a ilha era chamada antes da invasão portuguesa.
Sou vicentino da gema porque São Vicente é um ovo. Às vezes, cozido (não sou fã). Às vezes, com a gema mole (não curto, mas tolero). Às vezes, frito (bom) e mexido (bom demais). Difícil explicar essa cidade, fácil senti-la. Não digo que amo, nem que odeio. Não estou aqui, sou daqui. Vivo aqui, mesmo quando saio daqui.
As cidades da baixada fazem isso com a gente. Esse apego frouxo, sem a força de querer bem, mas também sem o desprezo que querer mal. Sai de Cubatão e acho que só não me acho um desgarrado porque trabalho lá e isso permite ter um pé em cada canoa e ir afundando aos poucos.