Pequenos ódios cotidianos

11 de junho de 2024 1 Por Leandro Marçal

Odeio quando me cobram mais simpatia, ânimo e bom humor. E quando me cobram mais simpatia, ânimo e bom humor numa segunda-feira de manhã. E quando toda simpatia, ânimo e bom humor é pura forçação de barra para ganhar popularidade na internet ou no mundo offline. E quando me cobram por aquilo que não sou, como se eu fosse obrigado a ser.

E que bebam do meu copo, e que comam do meu prato sem autorização. Odeio quem fala me encostando, e quem fala gritando. E quem pede licença para me passar andando na calçada, e quem não responde um bom dia, ou quem dá bom dia para me vender bugigangas. E quem força intimidade, e quem mata e morre por popularidade, e quem faz piada sobre ser velho mesmo com pouca idade.

E certos tipos de gente fáceis de odiar: coaches, líderes religiosos tão picaretas quanto milionários, palestrantes motivacionais que nunca fizeram nada de relevante na vida para dar palestras motivacionais (e palestras motivacionais, e discursos motivacionais, e motivacionismo como solução individual para problemas coletivos), intolerantes religiosos, extremistas de direita, estúpidos sem vergonha de vomitar estupidez, orgulhosos do sedentarismo, crossfiteiros fanáticos, ratos de academia lunáticos, religiosos da corrida. E fanáticos de todos os tipos. E fundamentalistas para todos os gostos.

Já odiou comidas? Eu já: azeitona, bife de fígado, jaca, miúdos, pão de forma, doce de abóbora, doce de banana, torta de banana, bolo de banana, banana frita, ameixa seca, frutas cristalizadas, panetone. Feijão embaixo do arroz. Arroz e feijão na lasanha. Arroz e feijão no macarrão. “Macarrão” parafuso. E não ter no meu prato cada comida no devido canto. E muito acima disso: ver (muita) gente passando fome, ver gente sem fome desperdiçando comida, ver gente sem fome naturalizando um mundo com gente passando fome.

Tem as expressões odiosas também: lançou a braba (!!!), casca de bala (???), calabreso (!?!?), lá ele (!!!???), hablou muito, não prometeu nada e entregou tudo, resenha, exxquece, é vapo, top, é sobre isso, parça, migo, man, job, maninho, ser humaninho, qualquer uma usando pronome neutro de forma pejorativa, qualquer outra discriminatória de forma recreativa, qualquer palavra ou expressão em inglês facilmente traduzida mas repetida por parecer mais sofisticada. Toda e qualquer tradução malfeita de expressão gringa (“no fim do dia” no lugar de “no fim das contas”). Toda e qualquer contração de nomes para fingir intimidade (o Lê, a Ju, a Fê, o Rô).

Aglomerações e gente com o celular para o alto em aglomerações. Que me chamem de tio sem ser minhas sobrinhas, que me chamem família sem nenhum parentesco, que me chamem de irmão sem a mínima aproximação, que me chamem de amigo sem a minha amizade, que me chamem de amor sem um mínimo afeto.

Tirar fotos em excesso. Posar para vídeos. Ser filmado. Ouvir minha voz. Olhar minha imagem. Me encarar. Ler meus textos em voz alta. Justificar por que escrevo. Ver a hora no formato AM/PM. Que julguem a minha excentricidade. Que subestimem a minha inteligência. Que me achem burro por gostar de futebol (e de Fórmula 1, e de esportes). Que me descrevam sem nuances. Que criem autoapelidos. Que usem a própria foto no papel de parede ou na figurinha de WhatsApp. Que usem a personalidade forte como desculpa para grosseria e falta de educação. Que vomitem autoestima espalhafatosa. E o elitismo. E os testes. E os joguinhos. E competir.

Perceber o ódio a banalidades quase irrelevantes. Me perceber ranzinza e mal-humorado. Me ver engraçado e caricato justamente por isso. Odeio a existência de outros ódios, maiores, mais reais, menos inofensivos, verdadeiramente perigosos, espalhados por todos os cantos, causando profundos males.