O voo do passaralho
Do meu quarto-escritório, ouvi os gritos da ave faminta. Pela janela, olhei para o alto, vi o voo rasante, de caçador prestes a dar o bote. Do escritório presencial, colegas falavam no cheiro de sangue, no medo de sair para almoçar, na aflição das asas batendo a poucos metros dos prédios comerciais. O passaralho voava sobre nossas cabeças.
Essa espécie nasce do cruzamento entre um pássaro e um caralho. Sim, aquele! Sem aviso prévio, visita empresas de qualquer tamanho e segmento, trazendo a demissão em massa no bico, como uma cegonha carregando bebês. Em tempos de termos em inglês como anestesia, tentaram rebatizá-la com o chique layoff para tratar do chute na bunda coletivo. Tem quem fale em “desligamento”, mas não sou um equipamento elétrico, nem quero morrer de eufemismo.
Quando profissionais mais experientes perceberam o voo do passaralho, deram o alerta geral. Certas chefias imitaram tatus cavando um buraco no chão para se esconder em silêncio, mesmo cientes dos nomes das vítimas do temido pássaro. Nas instâncias superiores, tentaram tranquilizar os animaizinhos acuados: calma, não sofra por antecipação, terei uma resposta até amanhã ou depois de amanhã, na reunião vamos esclarecer tudo isso, eu confio no seu trabalho. Para quem não recebe um salário que mal paga as contas do mês, os gritos da ave não preocupam.
Nos bastidores, na sala do cafezinho, na rádio peão, nos olhares desconfiados e nos grupos de WhatsApp, não se falava em outro assunto. Boatos voam mais rápido que o passaralho, mas podem ser desmentidos pela realidade. Já o passaralho é irreversível. Dois ou três ou seis colegas chamados para uma reunião. Ao fim, cabeça baixa, decepção, conformação e desemprego.
Quem sobrevive aos primeiros ataques dessa curtíssima temporada de caça olha para os lados e pergunta se será o próximo. Quem sobrevive ao passaralho perde o restante da motivação para trabalhar. Porque sabe que essa ave não tem dó, nem se importa com suas habilidades técnicas, talento, currículo e outras exigências solicitadas antes da contratação. No passaralho, lembramos uma obviedade: para CNPJs, somos números.
No dia seguinte, o andar de cima tentou agir como se nada tivesse acontecido. Bola para frente, toquemos o barco, o show tem que continuar. Fomos brindados com uma série de explicações tiradas de um gerador de lero-lero qualquer, inspiradas num ChatGPT da vida. Fingimos acreditar porque temos contas a pagar. E ainda durante o expediente, olhei para cima e respirei aliviado. As aves rondando o meu quarto-escritório eram apenas urubus procurando carniça para o almoço.