O último feriado prolongado de cinco dias antes de 2087
por Luane Fratelli
“Um feriado prolongado desses e você saindo do litoral?”. A motorista de aplicativo ficou completamente indignada com a minha confirmação. Enquanto metade dos amigos estava no Rio de Janeiro, a outra metade, que vivia na grande metrópole, se aglomerava no extenso congestionamento que compunha o grande êxodo litorâneo.
Disseram que esse alinhamento entre a Páscoa e Tiradentes só vai acontecer de novo em 2087. O investimento em um feriadaço como esse exige um planejamento meticuloso para garantir o aproveitamento máximo. E, na contramão do fluxo de carros – e da opinião da motorista – estavam todas as minhas expectativas.
Em cinco minutos eu chegaria ao prédio do apartamento alugado e esperaria o V., que demorou o triplo do tempo para chegar a São Paulo, graças ao grande êxodo litorâneo. Fala dela agora, motorista!
O bom de chegar antes é que eu poderia ajeitar as malas e aliviar a minha bexiga, que resistiu aos 55 minutos de viagem em um carro de aplicativo, cujo motorista, fã de conversas invasivas, pedia detalhes sobre como seria o meu feriado na cidade cinza.
O prédio do apartamento era sofisticado – principalmente para alguém da geração Y como eu – e a burocracia para abrir a fechadura digital me fez preferir esperar na recepção pelo V.
Enquanto presenciava um divertido e tenso embate entre os porteiros e uma visitante do prédio chique, vi de esguelha alguém do lado de fora fazer um movimento brusco de meia-volta. Havia, na frente do prédio, alguns entregadores de comida por aplicativo esperando por clientes, e todos olhavam na direção em que a pessoa correu.
Conhecendo bem a cidade, imaginei que poderia ser uma vítima desses meninos com olhos de águia que circulam de bicicleta em busca de desavisados. Mandei mensagem para o V. por precaução: “Ei, acho que um cara foi roubado aqui na frente do prédio. Tá tudo bem?” Nada.
Saio do prédio e pergunto aos entregadores, que confirmam a minha teoria. Olho para os lados e vejo, ao longe, V. conversando com alguns caras no bar. Ele me vê e anda cabisbaixo em minha direção. “Pegaram o seu celular, né?”, perguntei. “Sim”, ele respondeu. Ainda tentou correr atrás e pediu ajuda de uma viatura policial, mas não havia mais nada a fazer.
Pronto. Lá se vai o último-feriado-prolongado-de-cinco-dias-antes-de-2087. Eu consigo visualizar o rosto da motorista de aplicativo manifestando uma energia de quem mandou confiar na grande metrópole?
Com toda a empolgação escorrida pelo ralo da amargura, voltamos para a recepção do prédio chique. Fazer o quê? Já está pago e ainda temos planos.
Chegando lá, vejo uma ligação do V. no meu celular, feita há pouco menos de três minutos. Como, se há dez minutos estávamos juntos? Ligo de volta, e a voz de um rapaz confuso atende o celular. Encontrou o aparelho caído na frente de um bar LGBTQIA+ que ficava a poucos metros do nosso prédio sofisticado. Combinamos o encontro para fazer a entrega.
Todas as pessoas alertavam para o perigo. E se fosse uma emboscada? Como um menino tão astuto quanto um ciclista de olhar de águia poderia deixar cair um celular assim? E quem, supostamente, teria encontrado e devolvido um celular no chão? No Brasil, em 2025? Não sei, não sabemos, não teríamos como saber, a não ser: indo. E fomos.
Claro, não sem antes deixar todos os pertences menos valiosos que a nossa vida na recepção do prédio chique. E assim, percorremos algumas ruas em busca do tal bar, sem mapa, sem lenço e nem documento, assim como faziam no período feudal.
Até que encontramos o lugar, e o melhor: estava lotado. Emboscada não era. Agora o próximo desafio dessa grande jornada de retomada do celular seria encontrar a pessoa da ligação. Na emoção do momento, não perguntei o nome e também estava sem o meu aparelho. O jeito seria abordar os vários presentes no bar que aguardavam na fila para aproveitar a noite de apresentações de música e dança.
Ninguém sabia ou tinha visto qualquer objeto caído na rua. O desânimo e a frustração já estampados no rosto de V. se contrastavam a mim, que sofro de um terrível mal chamado riso frouxo. Eu me divertia muito com toda aquela situação, muito provavelmente pelo reconfortante sentimento de saber que o meu celular estava seguro.
A sugestão da moça do caixa foi certeira, embora parecesse um pouco absurda. “Podemos anunciar no microfone, mas vocês vão ter que esperar terminar a próxima apresentação.”
Vale ressaltar que, a essa altura, eu já tinha atingido 90% da capacidade da minha bexiga e, naquele momento, tinha dois grandes desafios internos: não urinar na calça e não rir. Quanto mais incidentes aconteciam naquela história, mais difícil ficava. Em contrapartida, V. já estava em situação de xoxo, capenga e amuado. O capitalismo nos restringe até disso.
Nem mesmo a mais fértil das mentes poderia prever o que estava para acontecer. E como num conto de fadas escrito e dirigido pela minha para sempre favorita Katya Zamolodchikova, a apresentação começou.
A notas eram velhas conhecidas da minha fragmentada adolescência e a primeira estrofe anunciava uma interpretação de “A Lenda”, de Sandy & Junior. Sobe então ao palco a artista montada no seu salto 15 para a abertura da noite de lipsync de drags. O bar explodiu em gritos e ovações.
Eu olhava para um lado e via V. em conflito interno. Eu sei que ele queria rir, eu sei. Sei também que ele só queria o celular de volta, mas convenhamos? Há cerca de uma hora estávamos repassando nossos planos de feriado, que não incluíam lipsync, Sandy & Junior ou drags. (Apenas por falta de agenda, ok? Como diria Narcisa: Canta pros gays! Eu amo os gays!)
Entre gritos e leques, vi a drag da Xuxa dos anos 90, e as Paquitas também. Em um reflexo, minha alma saiu do corpo e vi, lá do alto, como um drone, todo o cenário. Tudo era orquestrado no abismo do absurdo. Ele só queria o celular de volta, ela só queria ser a Sandy, e eu só queria urinar.
Pedi licença e corri para o banheiro. Considerando o tempo de espera e a água consumida nas últimas horas, demorei o bastante para a dublagem acabar e conquistar o público. Pude ouvir a apresentadora pedir mais gritos para a participante e anunciar a próxima concorrente. Mas antes, um recadinho:
“Gente, alguém achou um celular aqui na frente do bar? Tem um rapaz aqui, parece que ligaram pra ele… Ali! Você que achou? É aquele moço ali? É seu o celular? Aêêêê! Viu, monas? Acha que só existe gay trambiqueira? As gays são babaaado!”
Não foi um delírio, tampouco um sonho. O clímax dessa história acontecia enquanto eu estava no banheiro, ouvindo, rindo e saciando as minhas necessidades emergenciais.
Lembrei dos planos que contei sob intenso interrogatório da motorista de aplicativo. Nenhum deles incluía o que aconteceu ali. Lembrei também da indignação da motorista de aplicativo, convicta do desperdício de um feriado histórico.
Talvez ela preferisse que eu tivesse ido em busca de bronze e caipirinha, mas eu voltei com um lipsync drag de Sandy & Junior, um celular resgatado por um anjo de glitter e um eterno e exclusivo último-feriado-prolongado-de-cinco-dias-antes-de-2087. Fala dela, agora!